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    Polícia e milícias me ajudam, diz chefe de quadrilha na Venezuela

    SAMY ADGHIRNI
    DE CARACAS

    08/11/2015 02h00

    "Cuidado, ele vai tentar te intimidar, não demonstre medo", diz o contato que acompanha a Folha ao chegar à casa de William (nome fictício), líder de uma organização criminosa que diz ter 150 homens espalhados pela Venezuela, país com uma das maiores taxas mundiais de homicídio.

    William espera do lado de fora, com uma pistola cromada 9 milímetros na mão. Usa boné para trás, calça baggy e um casaco esportivo nesta tarde chuvosa nos morros de Antímano, favela no sudoeste de Caracas. Desconfiado, convida com frieza para entrar na casa, um modesto sobrado numa subida íngreme.

    Ele exige ficar sentado frente a frente com o repórter, a meio metro de distância. Os pés quase se tocam. A mão não larga a pistola, que será apontada diversas vezes para o peito do interlocutor.

    Samy Adghirni/Folhapress
    William (nome fictício), posa para foto numa casa em uma favela de Caracas
    William (nome fictício), posa para foto numa casa em uma favela de Caracas

    "O que quer saber?", pergunta ao repórter, com voz baixa e monocórdica.

    Primeiro, os negócios. William, que diz ter "entre 20 e 30 anos", diz comandar uma organização dedicada a vários crimes, incluindo sequestro, sequestro-relâmpago, assalto e tráfico de drogas.

    A especialidade e negócio mais rentável do grupo, porém, é manter reféns em cativeiro. "Passamos meses e até anos seguindo alvos até acharmos que vale a pena. Só vamos atrás de quem pode pagar", relata. Crianças, afirma ele, são alvos válidos.

    O valor do resgate depende do perfil da vítima. Os mais ricos devem pagar em dólar. Outras famílias pagam em bolívar, moeda local.

    Os preços variam de 500 mil bolívares (cerca de US$ 600, ou R$ 2.256, na cotação paralela) até mais de US$ 100 mil (R$ 376 mil).

    William exige pagamento em 48 horas ou "um pouco mais". E se demorar? "Com muito pesar, começamos a mandar à família pedaços da pessoa. Um dedo. Uma mão. Um pé. Até pagar", diz, terminando quase todas as frases com o cacoete "me entiendes?" (similar a "entendeu?" em português).

    Ele não revela quantos sequestros já comandou.

    O repórter pergunta como lida com a polícia venezuelana: "Temos contatos nos diferentes órgãos policiais que nos ajudam a levantar dados de quem estamos seguindo. Pagamos pelo apoio desses agentes".

    William diz que a polícia também o avisa sobre hora e local de eventuais batidas.

    Na semana passada, dois policiais em Maracaibo (oeste do país) foram presos em flagrante ao dar cobertura a bandidos que assaltavam um motorista.

    ARMAS DA POLÍCIA

    É também nas fileiras policiais que William se abastece com armas. O repórter pergunta se ele pode mostrar algo além da pistola cromada.

    "Tenho muitas outras armas, mas se eu te mostrar, serei obrigado a te matar."

    William diz ter contato com os "coletivos", grupos parapoliciais armados pelo chavismo para impor ordem em bairros populares e reforçar o aparato de segurança do Estado quando preciso.

    "Trabalhamos juntos nas áreas que eles controlam. Eles às vezes nos emprestam munição", afirma, corroborando a tese, veiculada pela oposição ao governo do presidente Nicolás Maduro, de que os "coletivos" permeiam o crime organizado.

    William já votou no então presidente Hugo Chávez (1999-2013), mas, em protesto contra Maduro, promete boicotar a eleição parlamentar de 6 de dezembro.

    "Não se pode esconder a situação do país. Olhe como estão as ruas, olhe estas filas no comércio, olhe esta criminalidade", diz o sequestrador, sem qualquer rastro de ironia.

    MULHER E FILHOS

    O repórter quer saber de sua vida pessoal. Desconfortável com o tema, ele se diz casado e pai de três filhos, cujas fotos enfeitam as paredes da sala, ao lado de desenhos coloridos de criança.

    Num canto da sala, uma medalha está pendurada. "É da minha mulher. Ela ganhou na formatura de segundo grau", disse William.

    O criminoso não parece se alegrar com música, futebol ou beisebol, paixão venezuelana. O dinheiro do crime é quase todo reinvestido em armas e munição. "Curto uma festinha de vez em quando."

    William, que não sorriu uma vez sequer em quase 30 minutos de entrevista, diz não sentir medo.

    "Estou nisso há 14 anos. Aprendi muita coisa. A sobrevivência te deixa mais forte", conta, tomando álcool de anis no gargalo.

    VIOLÊNCIA

    A Venezuela é, sob todos os aspectos, um dos países mais perigosos do mundo. A taxa de homicídios admitida pelo governo é de 62 para cada 100 mil habitantes, só inferior à de Honduras. No Brasil são 26,3/100 mil (2014). ONGs venezuelanas dizem que os números são muito mais altos.

    Segundo a empresa de segurança Chubb, foram mais de 2.000 em 2013, sem contar os sequestros-relâmpago. Linchamentos estão em alta, assim como ataques com granadas contra forças do Estado.

    Entre as várias explicações para o fenômeno, a corrupção dos corpos policiais se sobressai e é apontada até por chavistas como um dos problemas mais graves do país.

    Muitos policiais e militares venezuelanos não só aceitam subornos de criminosos como também participam ativamente de atividades ilícitas. A Justiça dos EUA investiga supostos laços entre militares e o tráfico de drogas.

    Especialistas também questionam políticas do chavismo, como as chamadas Zonas de Paz, nas quais o Estado cedeu autoridade a facções locais.

    Outra medida contestada foi a decisão de distribuir dezenas de milhares de armas a civis em favelas para formar "coletivos".

    Os grupos parapoliciais eram leais ao então presidente Hugo Chávez (1999-2013), mas hoje mantêm agenda própria.

    "A violência nunca foi prioridade do chavismo, que sempre considerou a luta contra a criminalidade como tema de direita", diz o sociólogo Luis Cedeño, da ONG Paz Activa.

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