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    paris sob ataque

    ANÁLISE

    Estado Islâmico se alimenta de bugigangas e da pós-modernidade

    MARIO SERGIO CONTI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    14/11/2015 17h10

    Um jovem que queria combater o capitalismo faz o quê? Na França, alguns milhares de revoltados tornaram-se jihadistas. Aderem ao Estado Islâmico e combatem o modo de vida ocidental de armas na mão. Levam a sua luta à Síria, ao Iraque e, na noite de sexta, à França.

    Há 50 anos, esse mesmo jovem viria ao Brasil. Foi o que fez Régis Debray, que esteve aqui quando tinha 24 anos. Veio conversar sobre guerrilha com Carlos Marighella. Foi em seguida a Cuba, onde se encontrou com seu grande amigo Fidel Castro.

    Debray transferiu-se depois à Bolívia, onde pegou em armas para combater o capitalismo. Estava sob a liderança de Che Guevara. Como na África ("Você será Tarzan, um branco entre negros", disse Nasser, o presidente egípcio, ao Che), a guerrilha fracassou na América Latina. Capturado, Debray ficou mais de três anos preso em La Paz.

    Sendo a sociedade do capital o que é -domínio dos seres humanos pelas mercadorias; exploração sem fim dos mais fracos; competição diuturna de todos com todos-, a vontade de combatê-la é objetiva. Brota tanto num muçulmano da periferia de Paris, cuja família veio das colônias, quanto de um francês egresso das escolas da elite.

    O modo como se enfrenta o mundo injusto diz algo da sociedade que se quer construir. A guerrilha cubana era romântica e aventureira, mas tinha raiz no marxismo e se insurgia contra a burocratização da Revolução Russa.

    Tinha também seu grão de caudilhismo latino-americano que, cercado pelo bloqueio americano e envenenado por Fidel, esterilizou o socialismo florescente. A ditadura dos irmãos Castro é sua caricatura, ora agonizante.

    O Estado Islâmico é coisa bem diversa. Teocrático, terrorista e medieval, é patriarcal e religioso. O califado que propagandeia, no entanto, se alimenta das bugigangas e imagens da pós-modernidade: redes sociais, computadores, celulares, atentados de inspiração hollywoodiana.

    É difícil enxergar uma sociedade construída pelo EI, tal a sua anomia. Mas o seu fanatismo cego, bem como o ódio que demonstra pelo Ocidente, tem poder de atração maior que o da esquerda -ao menos em alguns setores da juventude marginalizada.

    Que jovem acharia bacana ser Hollande? Ou Lula, enaltecendo empreiteiras? Quem acredita numa esquerda que fala obsessivamente em corrupção, direito ao aborto e casamento homossexual e não diz uma palavra sobre expropriação e igualdade?

    Régis Debray vem de publicar "Madame H.". O agá é uma maiúscula enorme: "História". Com 75 anos, ele sucumbiu ao saudosismo senil: a melodia melancólica do livro diz que o passado era bom, o presente é uma lástima e o futuro, lúgubre.

    Felizmente, o livro não é só nostalgia. Ao continuar no campo da esquerda anticapitalista, Debray demonstra que a História é maleável e há que buscar um caminho que não se conforme ao terror e às iniquidades vigentes. Utópico? Talvez. Mas mudar o mundo implica nisso.


    MARIO SERGIO CONTI é apresentador do programa "Diálogos", da GloboNews

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