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    paris sob ataque

    É necessário um Renascimento do pensamento islâmico, diz filósofo

    LUCAS NEVES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

    18/11/2015 02h00

    O filósofo e ensaísta francês Pascal Bruckner diz em entrevista à Folha que os atentados de sexta-feira passada em Paris sugerem que a guerra ao terrorismo "está apenas começando" e que é preciso reformar o islamismo.

    Segundo ele, "desativar militarmente, policial e judicialmente o radicalismo vai levar várias gerações".

    O que deve ser feito no curto prazo, afirma o intelectual francês, é estimular a autocrítica no seio da comunidade muçulmana, além de garantir a proteção da maioria moderada em face de possíveis ataques de radicais islâmicos.

    Para Bruckner, 66, os atentados da última semana diferem dos de janeiro (quando os alvos foram o semanário satírico "Charlie Hebdo" e um mercado de alimentos kosher) por terem alvo difuso. "Agora, os franceses são culpados por existirem, por serem franceses."

    Autor do livro "A Tirania da Penitência" (Difel, 2008), em que analisa o suposto remorso europeu por seu histórico bélico e os efeitos disso na política externa do bloco político, ele vê nas primeiras reações da França aos atentados (bombardeios à Síria e abertura de postos na polícia e na Justiça) uma "mudança radical" de atitude.

    "Agora é François Hollande, de repente líder marcial, quem vai pedir a Obama para se envolver", enfatiza.

    Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

    Etienne Laurent - 13.nov.2015/Efe
    Pascal Bruckner (à esq.) no enterro do filósofo André Glucksmann, na sexta (13), antes dos atentados
    Pascal Bruckner (à esq.) no enterro do filósofo André Glucksmann, na sexta (13), antes dos atentados

    *

    Folha - Antes dos atentados do dia 13 em Paris, o sr. já dizia que o islamismo radical era o desafio deste século...

    Pascal Bruckner - O desafio do século 21 é o islamismo, ponto. O radical é a degeneração ideológica do islã. As duas coisas estão ligadas. Desativar militar, policial e judicialmente o radicalismo vai levar várias gerações.

    Virou um fenômeno universal, que vai da Argentina à China. A resposta a ele tem de ser encontrada e inventada com a colaboração dos próprios muçulmanos, que são as primeiras vítimas do extremismo.

    Em que deve consistir essa resposta?

    A primeira é militar e diz respeito a russos, iraquianos e iranianos [que apoiam o regime sírio de Bashar al-Assad] tanto quanto a franceses, americanos, ingleses, sauditas e jordanianos [todos pró-rebeldes].

    Há também a resposta policial, a jurídica, a dos serviços de inteligência. Mas, para além de todas elas, há uma resposta ideológica.

    O islã, guardadas as devidas proporções, encontra-se na situação em que o cristianismo estava nos séculos 17 e 18: num momento de mutação. Será ele capaz de se reformar, sabendo que não há algo que corresponda a uma Roma do islã sunita?

    Não há uma direção unívoca [de orientação ideológica]. Cada um pode interpretar a religião e o Alcorão como quiser. Isso começou em 1979, com a Revolução Islâmica no Irã.

    Contrariamente ao que disse [o presidente dos EUA Barack] Obama [em 2013] sobre o fim da guerra ao terror, não: ela está apenas começando. É só o início, o confronto está longe de terminar.

    Em janeiro, no atentado contra o "Charlie Hebdo", os terroristas tinham um intuito preciso: dizimar aqueles que, segundo eles, haviam ridicularizado o profeta. Sexta passada, porém, o alvo era bem mais difuso: uma certa "arte de viver" à francesa, o hedonismo... foi uma declaração de guerra a uma civilização?

    Sim, essa é a grande diferença. Nos atentados de janeiro, ainda podíamos identificar "justificativas": a caricatura do profeta, no caso do ataque ao jornal; a guerra entre judeus e palestinos, no do tiroteio no mercado judaico.

    Agora, os franceses são culpados por existirem, por serem franceses. O terrorismo islâmico carrega uma ilusão apocalíptica do mundo, envolta num discurso religioso; o que querem é matar o máximo possível de gente e acelerar a instauração do califado.

    É uma visão messiânica. Não há mais "razão" para matar, eles querem matar e morrer para ir direto para o paraíso.

    Na praça da República, principal cenário parisiense das homenagens às vítimas do atentado, mensagens conclamam a não estigmatizar a população muçulmana. Como evitar que a resposta aos atentados descambe para a islamofobia?

    É preciso proteger a comunidade muçulmana, as mesquitas dos ataques eventuais de alguns elementos extremistas. E também encorajar o espírito crítico nesse segmento da população.

    Essa é a dificuldade: proteger os fiéis em seu direito à crença sem deixar de estimular uma discussão teológica.

    Seria necessário um Renascimento, uma Reforma do pensamento islâmico. Isso já é pleiteado por alguns intelectuais muçulmanos.

    Mas é bom saber que o cristianismo levou quatro séculos para se questionar e rever seus erros, a partir da Reforma Protestante. Não sei se o islã vai seguir esse caminho.

    O sr. já escreveu sobre a suposta culpa europeia por seu passado bélico como obstáculo à constituição de uma Defesa forte e a intervenções militares incisivas no exterior. Os bombardeios franceses na Síria nos últimos dias e o anúncio de novos postos na polícia e na Justiça sugerem a superação desse remorso...

    Acho que sim. A única a ainda carregar essa culpa é a extrema esquerda, sob o argumento de que "somos culpados, nós os ocupamos e colonizamos".

    O que é incrível no que está acontecendo agora é que a França se desenha como nação bélica, num momento em que os EUA não querem mais saber de guerra.

    Há uma mudança radical em relação a 2003 [quando a França se opôs à invasão do Iraque pelos EUA e seus aliados]. Agora é [o presidente socialista] François Hollande, de repente líder marcial, quem vai pedir a Obama para se envolver, até porque os EUA têm certa responsabilidade pela situação no Iraque.

    E os americanos aceitam operações aéreas, porém não mais em terra, porque estão traumatizados com o Afeganistão e o Iraque.

    E há outro fenômeno em curso na França: a retomada de prestígio do Exército, desprezado desde a Guerra da Argélia (1954-62). De repente, ele voltou a ser um dos melhores do mundo. É o segundo do mundo em eficácia, meios, treinamento, armas.

    Para completar, Hollande vendeu quase 200 caças Rafale [da francesa Dassault] a países como Índia, Qatar e Egito. O Exército e a polícia francesa são os dois setores que mais funcionam no país hoje, mais do que a economia e a indústria, por exemplo.

    Em que medida a radicalização religiosa de jovens franceses é um problema da educação nacional? A escola poderia remediar isso?

    Veja bem, a radicalização também existe nos EUA, no Reino Unido e nos países de maioria muçulmana: milhares de jihadistas vêm da Tunísia, do Marrocos, da Argélia, da Líbia. O jihad oferece aos jovens uma resposta imediata a suas angústias.

    A dificuldade de construir sua identidade é solucionada pela adesão a uma ideologia radical que tranquiliza.

    O jihad reconforta seus adeptos e lhes oferece a perspectiva da salvação: "Você morre, mas chegará ao paraíso um segundo depois, e Deus vai te acolher".

    Numa idade em que há fragilidades, o apelo pode ser extraordinário. É uma maneira de compensar todas as falhas psicológicas da juventude.

    A escola tem só uma missão, instruir, o que já tem dificuldade em fazer. Se tiver, além disso, uma missão cívica, vai ficar ainda mais sobrecarregada.

    Quem pode evitar a radicalização são os pais. É na família que se deve incentivar a tolerância.

    No plano comunitário, os imãs das mesquitas têm um papel a desempenhar, estimulando uma leitura mais indulgente do Alcorão.

    *

    RAIO-X
    PASCAL BRUCKNER

    IDADE 66 anos

    FORMAÇÃO estudou filosofia e letras

    BIBLIOGRAFIA "Lua de Fel", " A Tirania da Penitência", "Ladrões de Beleza" e "A Tentação da Inocência", entre outros

    PREMIAÇÕES Recebeu os prêmios Médici de Ensaio, Renaudot e Montaigne

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