Como francês com orgulho de sê-lo, estou tão abatido quanto qualquer outro com os acontecimentos em Paris. Mas não estou espantado nem incrédulo. Conheço o Estado Islâmico. Passei dez meses como refém do EI e sei com certeza que nossa dor, nosso sofrimento, nossas esperanças, nossas vidas não tocam seus membros. Eles habitam um mundo à parte.
A maioria das pessoas só os conhece por seus materiais de propaganda, mas eu pude ver por trás disso. Enquanto fui refém do EI, conheci talvez uma dúzia de seus membros, incluindo Mohammed Emwazi; Jihadi John era um de meus carcereiros. Ele me apelidou de "Baldy" (carequinha).
Mesmo agora eu às vezes converso com eles nas mídias sociais. Posso dizer a você que muito o que você pensa a respeito deles é fruto do trabalho de marketing e relações públicas do EI. Eles se apresentam ao público como super-heróis, mas longe das câmeras são um pouco ridículos de muitas maneiras —garotos de rua embriagados de ideologia e poder. Temos uma expressão na França —"estúpido e perverso". Eu os achei mais estúpidos que perversos. Sem querer minimizar o potencial assassino da estupidez.
Gonzalo Fuentes/Reuters | ||
Ex-reféns do Estado Islâmico, os jornalistas franceses Nicolas Henin (à dir.) e Didier Francois desembarcam de helicóptero na base aérea de Villacoublay, próximo a Paris, em abril de 2014 |
Todos os decapitados no ano passado foram meus colegas de cela, e meus carcereiros tinham o hábito de fazer brincadeiras idiotas conosco —tortura mental—, dizendo que um dia seríamos libertados e, então, duas semanas mais tarde, observando em tom despreocupado, "vamos matar um de vocês". Nas primeiras vezes acreditamos neles, mas depois acabamos percebendo que, na maioria, eles eram fanfarrões que estavam se divertindo às nossas custas.
Eles se divertiam fazendo falsas execuções. Uma vez usaram clorofórmio comigo. Outra vez foi uma cena de decapitação. Vários jihadistas que falavam francês gritavam: "Vamos cortar sua cabeça, colocar em cima de sua bunda e carregar no YouTube". Tinham uma espada comprada numa loja de antiguidades.
Eles estavam gargalhando, e eu entrei no clima da brincadeira, gritando, mas eles só queriam curtir. Assim que foram embora, eu me voltei a outro dos reféns franceses e dei risada. Era ridículo.
Uma coisa que chamou muito a minha atenção foi como eles eram tecnologicamente conectados; eles acompanham as notícias obsessivamente, mas tudo o que veem passa pelo filtro deles. São totalmente doutrinados; agarram-se a todo tipo de teoria conspiratória e nunca reconhecem as contradições.
Depois de tudo o que aconteceu comigo, ainda não acho que a prioridade seja o Estado Islâmico. A meu ver, a prioridade é Assad. Tudo os convence de que estão no rumo certo e, especificamente, que há uma espécie de processo apocalíptico em curso que levará a um confronto entre um exército de muçulmanos de todo o mundo e os outros, os cruzados, os romanos. Eles interpretam tudo como sendo algo que os conduz por esse caminho. Consequentemente, tudo é uma bênção de Alá.
Com o interesse que eles têm pelas notícias e as mídias sociais, devem estar acompanhando tudo depois do ataque assassino que lançaram contra Paris, e imagino que o que devem estar dizendo neste momento é "estamos ganhando". Eles vão se sentir animados com cada sinal de reação excessiva, de divisão, de medo, de racismo, de xenofobia; vão se alegrar com manifestações de ódio nas mídias sociais.
Um princípio fundamental da visão de mundo deles é a crença de que as comunidades não podem conviver com muçulmanos, e as antenas deles ficam ligadas todos os dias para buscar evidências que comprovem essa ideia. As imagens vindas da Alemanha de pessoas acolhendo imigrantes devem ter sido especialmente perturbadoras para eles. Coesão, tolerância —não é isso o que eles querem ver.
Por que a França? Por muitas razões, talvez, mas acho que eles identificaram meu país como um elo fraco na Europa, um lugar onde divisões poderiam ser semeadas facilmente. É por isso que, quando me perguntam qual deve ser nossa reação, digo que devemos agir de modo responsável.
No entanto, nossa resposta será jogar ainda mais bombas. Não sou apologista do EI. Como poderia ser? Mas tudo que sei me diz que este é um erro. O bombardeio terá repercussão enorme, será um símbolo de ira justa. Quarenta e oito horas depois da atrocidade, aviões militares realizaram seu maior ataque aéreo até agora na Síria, despejando mais de 20 bombas sobre Raqqa, reduto do Estado Islâmico. A busca de vingança talvez fosse inevitável, mas o que é preciso agora é deliberação. Meu medo é que esta reação agrave uma situação que já é muito grave.
Enquanto tentamos destruir o EI, como vão ficar os 500 mil civis que ainda vivem em Raqqa, sem poder sair de lá? Como ficará a segurança deles? E a perspectiva muito real de que, ao deixar de levar essa questão em conta, nós transformemos esses civis em extremistas? A prioridade precisa ser proteger essas pessoas, não jogar mais bombas na Síria. Precisamos de zonas de exclusão aérea —zonas fechadas aos russos, ao regime, à coalizão. A população síria precisa de segurança, senão ela própria vai converter-se em grupos como o EI.
O Canadá se retirou da guerra aérea após a eleição de Justin Trudeau. Quero demais que a França faça o mesmo, e a razão me diz que isso poderia acontecer. Mas o pragmatismo me diz que não acontecerá. O fato é que estamos presos em uma armadilha que o EI nos armou. Seus homens vieram a Paris com Kalashnikovs, dizendo que queriam combater os bombardeios, mas conscientes de que seu ataque nos obrigaria a continuar jogando bombas ou até a intensificar esses ataques aéreos contraproducentes. É isso o que está acontecendo.
Emwazi se foi, morto em um ataque aéreo da colisão; sua morte foi elogiada no Parlamento. Não choro seu fim. Mas durante a orgia de assassinatos que ele cometeu, também ele seguiu essa estratégia de duplo blefe. Depois de degolar o jornalista americano James Foley, ele apontou sua faca para a câmera e, voltando-se para a próxima vítima pretendida, falou: "Obama, pare de intervir no Oriente Médio, ou então eu o matarei". Ele sabia muito bem qual seria o destino do refém. Sabia muito bem qual seria a reação americana —mais bombas. É isso o que o EI quer, mas será que deveríamos lhe dar isso?
O grupo é perverso —disso não há dúvida. Mas, depois de tudo o que me aconteceu, ainda não penso que o EI seja a prioridade. Na minha opinião, Bashar Assad é a prioridade. O presidente sírio é responsável pela ascensão do EI na Síria, e, enquanto seu regime continuar no poder, o EI não poderá ser erradicado. Nem poderemos impedir os ataques em nossas ruas. Quando as pessoas dizem "o EI primeiro, depois Assad", não acredito. Elas só querem manter Assad no poder.
Não há no momento nenhum mapa do caminho político nem qualquer plano para engajar a comunidade árabe sunita. O EI vai cair, mas é a política que fará isso acontecer. Enquanto isso há muito que podemos realizar depois desta atrocidade, e a chave está em manter nossos corações fortes e na resiliência, pois é isso o que eles temem. Eu os conheço: bombardeios são o que eles esperam. O que eles temem é a união.
Nicolas Hénin é autor de "Jihad Academy, The Rise of Islamic State".
Tradução de Clara Allain
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