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    'Argentina vai desideologizar sua economia', diz ex-presidente do BC

    MARIANA CARNEIRO
    DE BUENOS AIRES
    SYLVIA COLOMBO
    ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

    22/11/2015 02h15

    O economista argentino Martín Redrado, 54, que comandou o Banco Central da Argentina por quase seis anos, durante a gestão de Néstor Kirchner, prevê que o país voltará à normalidade, seja quem for o vencedor da eleição deste domingo (22).

    Em sua opinião, tanto o opositor Mauricio Macri quanto o governista Daniel Scioli têm perfis mais moderados, pragmáticos. "A Argentina vai 'desideologizar' o manejo da economia", diz.

    Ex-vice-chanceler, Redrado recebeu a Folha em seu escritório, em Buenos Aires, falando português. Ele diz que a Argentina de Cristina errou ao se afastar de seu principal sócio e diz que Macri, se eleito, não deve tomar decisões sem consultar o sócio, ao defender uma posição mais dura contra a Venezuela.

    Leia, a seguir, a entrevista.

    Juan Mabromata - 11.jan.2010/AFP
    O presidente do Banco Central argentino, Martín Redrado, deixa sua casa em Buenos Aires (Argentina). *** Argentina's Central Bank chief Martin Redrado, leaves his house in Buenos Aires on January 11, 2010. A major political and institutional crisis brewing in Argentina over repaying its national debt deepened Friday as the courts dealt two blows to President Cristina Fernandez de Kirchner. In two rulings, an Argentine judge thwarted government efforts to use central bank reserves to pay down the national debt, and said Martin Redrado, the bank's head sacked by presidential decree must be reinstated. AFP PHOTO / Juan Mabromata
    O então presidente do Banco Central argentino, Martín Redrado

    *

    Folha - O que está acontecendo nesta eleição?
    Martin Redrado - O governo kirchnerista, nos últimos anos, avançou sobre os poderes públicos, a Justiça e os meios de comunicação. Creio que as pessoas disseram "basta" a tudo isso. Creio que a sociedade agora quer mais instituições e mais previsibilidade. Além de acabar com coisas triviais que incomodam, como a transmissão do futebol [estatizada por Cristina Kirchner], em que temos de ver um monte de propaganda oficial durante os jogos.

    Quais são os problemas da Argentina hoje?
    A Argentina tem enormes distorções em matéria econômica. A taxa de inflação está alta e o salário dos trabalhadores chega ao fim do mês. Há quatro anos o país não cresce e há cada vez mais travas à produção.

    É preciso um ajuste?
    Creio que a palavra é "ordenamento". Ninguém aceitaria a palavra ajuste neste momento, nem um governo de Macri poderá fazê-lo. Além disso, não há uma sensação de crise. Nas ruas, nos restaurantes, você não vê isso. Vai ser difícil apresentar à sociedade a necessidade de um ajuste.

    Por que a crise não é visível?
    Os números da economia são preocupantes, mas houve incentivo forte do governo ao consumo e, quando as pessoas estão consumindo, não têm sensação ruim. Quando se alerta que estão gastando todas as reservas do Banco Central, isso é algo distante. Só agora as pessoas começam a se dar conta de que não podem viajar ao exterior porque não há dólares. E aos poucos vai caindo a ficha.

    Qual é o caminho, então?
    A questão principal é tomar medidas para que a economia dê mostras de normalidade. Por exemplo, ter cinco valores para o dólar não é normal. Uma inflação em 28% não é normal. Ter restrições ao comércio exterior, como estão sofrendo os exportadores brasileiros não é normal. Ter tarifas subsidiadas de eletricidade para gente que pode pagar não é normal. Mas reforço que acredito que seja preciso ter tarifas sociais de eletricidade para as 12 milhões de pessoas que estão abaixo da linha de pobreza.

    A chave é gerar no curto prazo um choque de medidas que permitam tratar o problema mais urgente, que é o esvaziamento das reservas do Banco Central. É preciso fazer com que muitos dólares que estão no país voltem ao mercado cambiário.

    Isso vai dar o tempo necessário para poder baixar a inflação sem um choque de ajuste para o qual a sociedade argentina não está preparada, nem social nem politicamente, para aceitar.

    Quais as diferenças das propostas econômicas de Scioli e Macri?
    Tivemos uma campanha com pouco conteúdo. Não sabemos muito, não conhecemos as equipes, só sei que o novo presidente terá de agarrar o touro pelos chifres, porque são poucos dias até a posse [em 10 de dezembro].

    Para os dois candidatos, porém, creio que há um consenso de que faltam dólares.

    É possível terminar com o cerco ao dólar em apenas um dia, como promete Macri?
    Acho muito difícil, porque, se ganhar, ainda não sabe com que situação vai se encontrar no Banco Central. Minha visão é que, para levantar o cerco, primeiro é necessário juntar uma massa crítica de dólares para mostrar que o Banco Central tem solvência e apresentar certeza cambiária.

    E isso é possível?
    A tendência tem de ser liberalizar, mas não fazer isso no primeiro dia. Com o Banco Central em bancarrota, como está agora, pode ser contraproducente.

    Macri quer acionar a cláusula democrática com relação à Venezuela, isso vai provocar problemas com o Brasil?
    Sou partidário de estabelecer uma aliança sólida com o Brasil, um sócio estratégico como o Brasil não pode ser surpreendido por decisões unilaterais. As coisas têm de ser conversadas. Por exemplo, os acordos com a China deveriam ter sido conversados com o Brasil primeiro, até negociados de forma conjunta.

    Creio que os dois países têm de resolver uma agenda que está complicada, e aprecio a cautela e a diplomacia que os brasileiros tiveram nos últimos anos. A relação bilateral está deixando muito a desejar.

    Eleição na Argentina - Candidatos se enfrentam

    Foi um erro o afastamento do Brasil ou havia alternativa?
    Havia alternativa. Foi um erro de política exterior, de visão do mundo. Nos isolamos do nosso sócio mais estratégico. E também foi um erro desse governo respaldar-se em apenas dois ou três países, como a China.

    O que acha da crítica de Scioli de que Macri seria um retorno ao neoliberalismo?
    A volta ao neoliberalismo é um slogan de campanha. A Argentina, em particular a sociedade, não aceitaria abrir completamente a economia, atar a economia ao dólar, não há espaço para levar adiante uma política desse tipo.

    O que vem pela frente?
    Não tenho dúvidas de que a Argentina voltará à normalidade. A pergunta é quanto de turbulência teremos na viagem até a normalidade. Pode ser mais rápido e chegarmos em seis meses, pode ser mais lento e levar um ano, um ano e meio.

    Volta à normalidade em um momento em que a região não está muito normal.
    É verdade, mas a Argentina tem uma vantagem nisso. Os ativos estão muito mais baratos aqui. Sair do isolamento vai nos permitir atrair o fluxo de divisas de que se necessita para investir.

    Esse fluxo será diferente se vencer Scioli ou Macri?
    Aparentemente Macri está mais bem colocado porque representa o que é distinto em relação ao que governou a Argentina nos últimos anos. No caso de Scioli, terá que atuar com mais vigor para mostrar ao mundo e aos investidores que é diferente.

    A Argentina de hoje é o Brasil do ano passado, ou seja, os políticos não querem dizer, mas virão ajustes, seja quem seja o vencedor?
    É muito diferente. No Brasil, quando se pensa em qual é a via para o crescimento, é difícil vê-la pelo consumo ou pelo investimento, e então sobrou o setor externo, que por sua vez tem que esperar. A Argentina tem como alternativa sair para o crescimento por meio do investimento no curto prazo. Mudando as expectativas pode atrair capitais em muitas áreas.

    Scioli e Macri são parecidos ou diferentes?
    Os dois têm perfis mais moderados, menos ideológicos, são pessoas práticas. A Argentina vai "desideologizar" o manejo da economia.

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