• Mundo

    Monday, 06-May-2024 00:01:19 -03

    paris sob ataque

    Para jovens alvo de terroristas, atentados mudaram preocupações

    LUCAS NEVES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

    23/11/2015 02h00

    Na noite da última quinta, dia 19, uma jovem levemente alcoolizada entrou num vagão do metrô que corta áreas boêmias do norte e do leste de Paris anunciando: "Todo mundo no chão! Vamos fazer um treinamento!".

    O trem inteiro imediatamente se crispou, antes de outra jovem cruzar o vagão para tirar satisfação.

    A reação inflamada é sinal dos tempos; antes dos atentados do dia 13, que deixaram 130 mortos e cerca de 350 feridos, a maioria com idades entre 20 e 40 anos, os circunspectos parisienses teriam deixado passar a gaiatice ébria.

    "Os terroristas miraram uma geração que podia se dar ao luxo da despreocupação. Isso se perdeu", diz o estudante Alban, 23, que, atestando o teor da sua fala, não quis informar seu verdadeiro nome.

    "Antes, o único problema era descobrir como virar adulto. Agora, caiu o muro que nos separava do mundo, nos demos conta de que o nosso país está envolvido em conflitos no exterior, que sair de casa sem saber se volta é a norma em vários lugares."

    Na tarde do dia 19, o jovem bebia com amigas num bar a menos de dois quarteirões do restaurante Petit Cambodge e do bar Carillon, onde 14 pessoas foram mortas.

    Às margens do charmoso canal de Saint-Martin, a área forma, com o 11º distrito (palco de outros três ataques, incluindo o maior, à casa de shows Bataclan), o eixo em que a juventude "branchée" (antenada) faz suas noitadas. Antes de ganhar o verniz "cool", essa aglomeração de bairros populares abrigou pequenas indústrias, ateliês e endereços anarquistas.

    Mapa dos locais do atentados em Paris

    BOBÔS

    Hoje, designers, fotógrafos, jornalistas, donos de start-ups, artistas e universitários lideram a turma que circula num perímetro apinhado de bistrôs, cafés e mercados com produtos orgânicos, livrarias e butiques "alternativas" (e caras).

    São os chamados "bobôs" (acrônimo para "burgueses boêmios"), que escolheram a região como base há cerca de dez anos, fazendo disparar o preço do metro quadrado e encetando um processo de gentrificação que ameaça expulsar os menos abastados.

    "Não dá para entender. Os alvos [dos atentados] são jovens de tendência esquerdista, abertos a outras culturas, que são amigos do árabe dono da casa de chá da esquina", lamenta-se a gerente de uma livraria à beira do canal.

    "É talvez o lugar de Paris em que mais há mistura de classes, raças e nacionalidades", faz coro o jornalista Thomas Legrand, coautor de "La République bobo" (a república bobô). "Miraram errado. Ninguém ali vai virar racista ou passar a votar na [partido de extrema-direita] Frente Nacional [que propõe restringir a imigração]."

    O que não impede frequentadores da região de se perguntarem por que cidadãos franceses como eles, da mesma idade, respondem ao chamado do Estado Islâmico.

    "O fortalecimento do Daesh [acrônimo para o nome em árabe da facção] é o resultado da guerra que a França luta no Oriente Médio, do país bombardeado e não reconstruído. Do fracasso na integração dos imigrantes", diz a educadora Lorraine Guilloteau, 23. "Seus líderes se valem desses nossos erros para inculcar em jovens o desejo de morrer."

    Para Alban, o calcanhar de Aquiles francês é outro. "Após a Segunda Guerra, a França não conseguiu mais criar mitos nacionais agregadores. Houve a descolonização no norte da África, mas as comunidades oriundas desses países ficaram órfãs: já não eram magrebinas, tampouco sentiam-se francesas."

    Menos preocupada com diagnósticos sociais, a estudante de arquitetura Salomé, 23, toma um chope na calçada do Chez Prune, também à beira do canal. Diz que os episódios do dia 13 despertaram nela um patriotismo insuspeito e o ímpeto de "revalorizar as pequenas coisas, como o cigarro e a cerveja".

    Conta que até pensa "uma, duas vezes por dia" nos bombardeios franceses na Síria, intensificados após os atentados, mas que, "no fundo", continua a viver sua vida. "Como naquela música do [compositor francês] Jacques Dutronc: 'Setecentos milhões de chineses/ E eu, e eu, e eu."

    O consultor Alex, 33, faz eco. "Deixar de sair é dar a eles o que querem. Não mudemos nossos hábitos! Ocupemos as calçadas dos bares, lotemos as casas de shows!"

    Edição impressa
    [an error occurred while processing this directive]

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024