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    Canadense perde chance de ser Miss Mundo por defender direitos humanos

    DO "NEW YORK TIMES", EM TORONTO

    28/11/2015 17h00

    Frank Gunn/Associated Press
    Candidata do Canadá a Miss Mundo, Anastasia Lin
    Candidata do Canadá a Miss Mundo, Anastasia Lin

    Trocando apertos de mãos com jovens usando lenços vermelhos da Liga da Juventude Comunista, candidatas de mais de 110 países desembarcaram nesta semana na ilha de Hainan, no sul da China, para o 65º concurso anual para a escolha da Miss Mundo.

    Mas uma candidata estava faltando na cerimônia de abertura: a Miss Canadá, ou Anastasia Lin, atriz e pianista clássica de 25 anos a quem foi negado um visto chinês para tomar parte no concurso (que dura um mês), presume-se que devido à sua militância em favor dos direitos humanos e da liberdade religiosa na China.

    Depois de passar semanas aguardando o visto em vão, na quarta-feira (25) Lin fez as malas e embarcou discretamente em um voo para Hong Kong, na esperança de conseguir um visto na fronteira e talvez entrar na China despercebida.

    Mas isso não aconteceu.

    Informadas sobre sua chegada, as autoridades chinesas a impediram de seguir voo para Hainan.

    Chris Helgren/Reuters
    Anastasia Lin posa com coroa de Miss em sua casa no Canadá
    Anastasia Lin posa com coroa de Miss em sua casa no Canadá

    Falando ao telefone de Hong Kong na quinta-feira (26), Lin disse que estava indignada e decepcionada, mas não inteiramente surpresa. "Tenho todo o direito de estar naquele evento", ela falou. "É triste. Afinal, sou apenas uma estudante e miss. Que razão eles têm para ter medo?"

    Na realidade, parece que Lin virou o pior pesadelo de Pequim. Emigrada chinesa que se radicou no Canadá na adolescência, ela é seguidora do Falun Gong, movimento espiritual de inspiração budista que a China classificou como "seita perversa". E ela é carismática, esperta e hábil em lidar com a mídia.

    Apesar das ameaças feitas a familiares seus na China, Lin se negou a recuar de sua plataforma oficial no concurso de beleza —a crítica das violações dos direitos humanos cometidas em seu país de origem.

    Seu choque com o governo chinês, um enfrentamento do tipo de Davi contra Golias, vem lhe angariando atenção favorável da mídia e multidões de apoiadores em todo o mundo, dando-lhe uma plataforma ainda maior a partir da qual falar das prisões e torturas enfrentadas pelos membros do Falun Gong na China.

    "Se eu não erguer a voz em defesa do que é certo, isso transmitirá uma mensagem muito negativa para aqueles que são alvos da intimidação da China e não têm condições de resistir", disse em entrevista recente dada em Toronto.

    O confronto entre a Miss Canadá e Pequim chama a atenção para os impulsos contraditórios dos líderes chineses: o desejo de silenciar críticos, tanto influentes quanto insignificantes, e o de ser uma potência mundial respeitada.

    Chris Helgren/Reuters
    Anastasia Lin posa com coroa de Miss em sua casa no Canadá
    Anastasia Lin posa com coroa de Miss em sua casa no Canadá

    OUTROS PROBLEMAS

    Num esforço para reforçar seu poder "soft", a China tem sido palco de várias conferências e eventos esportivos internacionais, desde o Grand Prix da Fórmula 1 em Xangai até os Jogos Olímpicos de Pequim —tanto a Olimpíada de 2008 quanto a Olimpíada de Inverno de 2022.

    Mas o governo não hesita em castigar celebridades, acadêmicos e religiosos estrangeiros que ultrapassam os limites do que é visto como um discurso politicamente herético.

    Nos últimos anos as autoridades cancelaram repentinamente shows programados do Bon Jovi, Linkin Park e Oasis, entre outros grupos e artistas, aparentemente porque um ou mais membros dos grupos tinham anteriormente expressado solidariedade com o Dalai Lama, o líder espiritual tibetano exilado. Outros nomes que constam da suposta lista negra são Brad Pitt, Christian Bale, Harrison Ford e Richard Gere, atores que assumiram posição declarada na questão dos direitos humanos.

    Anastasia Lin não é a primeira vencedora de concurso de beleza a ter problemas com a China. No fim de semana passado, na Áustria, os responsáveis pelo concurso Miss Terra, agindo a pedido da China, expulsaram do concurso a candidata do Taiwan depois de ela insistir em usar uma faixa dizendo "Miss Taiwan ROC" (Miss Taiwan República da China) e se recusar a usar a faixa substituta dizendo "Miss Taipé Chinesa" —a identidade que Pequim muitas vezes exige que seja adotada por moradores de Taiwan em eventos internacionais, para reconhecer sua posição de que a ilha autônoma faz parte da China.

    A embaixada chinesa em Ottawa se negou a comentar o pedido de visto de Lin, mas na quinta-feira divulgou comunicado dizendo: "A China acolhe todas as atividades legais organizadas na China por organizações e agências internacionais, incluindo o concurso Miss Mundo. Mas não autoriza a entrada no país de nenhuma 'persona non grata'."

    SUPOSTAS AMEAÇAS

    À medida que a estatura econômica e diplomática da China vem crescendo, o mesmo se dá com sua capacidade de projetar sua influência fora de suas fronteiras. Interessada em conseguir acesso ao imenso mercado chinês, Hollywood vem alternando roteiros para agradar à censura chinesa, e o primeiro-ministro britânico, David Cameron, foi criticado em seu país por evitar a discussão pública das violações dos direitos humanos cometidas na China, em um esforço para ser visto com bons olhos por Pequim.

    Minxin Pei, especialista em política chinesa no Claremont McKenna College, na Califórnia, disse que Pequim vem conseguindo mais e mais concessões em outros países.

    "Os líderes chineses são realistas. Eles sabem que as pessoas vão prender o nariz e continuar a dobrar-se à vontade deles, porque eles têm um talão de cheques poderoso", ele disse. "O tratamento que estão dando a Anastasia Lin faz parte de uma estratégia mais ampla para intimidar quem se atreve a fazer críticas —como quem sacrifica um frango para assustar um bando de macacos."

    Mas Lin se nega a ser esse frango. Ela conta que em maio, dias depois de ela ter ganho o concurso Miss Canadá, em Vancouver, agentes de segurança foram à casa de seu pai, que ainda vive na China, e o aconselharam a fazer sua filha moderar seu discurso sobre direitos humanos.

    Quando ela telefonou a seu pai, ele não quis falar, dando a entender que o telefone estava sendo grampeado. Mas ameaçou cortar relações com Lin se ela não seguisse as ordens.

    Em vez disso, Lin difundiu publicamente as ameaças feitas a seu pai, dono de uma empresa de equipamentos médicos. Escreveu um artigo de opinião no "Washington Post" e depôs em uma audiência perante o Congresso, falando dos direitos humanos na China.

    Depois disso, seu pai deixou de lhe dar apoio financeiro.

    Lin disse que seu pai é um exemplo da mentalidade de muitos chineses traumatizados com o passado turbulento do país e que têm medo de se manifestar em favor do que acreditam que seja o correto.

    "É triste. Meu pai acha que colocar uma foto de Mao em sua sala de trabalho lhe dará proteção. Mas o apoio dele ao Partido Comunista não é uma questão de amor pelo partido, mas de medo."

    Lin já teve experiência em primeira mão da capacidade do governo de inspirar tanto amor quanto medo em seus cidadãos. Como líder estudantil em seu colégio de segundo grau em Hunan, ela era a encarregada de denegrir o Falun Gong, organizando sessões de um filme de propaganda política e dizendo aos estudantes que deviam denunciar seguidores do movimento para a polícia.

    Mesmo depois de emigrar para o Canadá com sua mãe, em 2003, ela desenvolveu um conjunto de argumentos para defender o comunismo nas aulas de estudos sociais. "É difícil se desvencilhar de uma vida inteira de doutrinação", ela disse. "Uma das primeiras canções que aprendemos no jardim de infância dizia 'o Partido Comunista está do meu lado mais que minha mãe".

    Tudo isso mudou no dia em que sua mãe lhe deu um livro produzido por defensores do Falun Gong detalhando a perseguição sofrida pelos membros do grupo na China.

    PERSONA NON GRATA

    Embora Lin tenha conquistado apoio amplo entre outros canadenses, está decepcionada com o silêncio do governo de Justin Trudeau, eleito primeiro-ministro no mês passado. François Lasalle, porta-voz do Ministério do Exterior, disse em e-mail que "o Canadá está comprometido com um engajamento construtivo com a China na questão dos direitos humanos", mas se negou a comentar a recusa de Pequim em dar um visto a Lin.

    A Organização Miss Mundo, cujo lema é "beleza com um propósito", também se negou a fazer sua defesa publicamente, embora Lin diga que os responsáveis pelo concurso tenham oferecido deixá-la competir na final de 2016.

    Representantes da organização, cuja sede fica em Londres, não responderam a telefonemas e e-mails pedindo comentários. Na quinta-feira a foto de Lin se fez notar por sua ausência da lista de candidatas a Miss Mundo postada em seu site online.

    "Vão me abandonar, e pronto", disse Lin.

    Ike Lalji, executivo-chefe do concurso Miss Mundo Canadá, falou mais abertamente, dizendo estar decepcionado com a intransigência da China. "Algumas pessoas não respeitam o pluralismo e a diversidade", ele disse em entrevista telefônica. "Seria bom se pudéssemos abraçar as culturas e crenças uns dos outros. Isso ajudaria a levar a paz ao mundo."

    Lalji é de origem étnica indiana e sua família foi expulsa da República Democrática do Congo na década de 1970, quando o país era conhecido como Zaire. Ele disse que tem orgulho da paixão de Lin pelos direitos humanos. Desde assumir a direção da organização Miss Canadá, cinco anos atrás, ele procura trocar os chavões superficiais que as candidatas muitas vezes repetem durante os concursos por declarações mais humanitárias.

    "Queremos ajudar as mulheres jovens a serem fortes e eficientes, em lugar de apenas ter uma miss que anda de um lado a outro agitando seu cetro", ele disse. "Porque hoje em dia as pessoas tendem a ouvir as mulheres jovens, especialmente se estiverem usando coroa e faixa."

    Apesar de estar decepcionada por perder a final do concurso, Lin está curtindo o fato de poder difundir sua mensagem.

    "Quando me disseram que eu era 'persona non grata', tive que procurar na Wikipédia para saber o que é isso", ela disse ao telefone. "Inicialmente fiquei furiosa, mas depois percebi que entrei para as fileiras de homens bonitos como Brad Pitt e Christian Bale. Agora sei que isso é uma medalha de honra."

    Tradução de Clara Allain

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