• Mundo

    Friday, 03-May-2024 18:19:03 -03

    conferência do clima em paris

    Limbo jurídico aguarda milhões de futuros "refugiados do clima"

    KATY DAIGLE
    DA ASSOCIATED PRESS, EM NOVA DÉLI (ÍNDIA)

    03/12/2015 07h00

    Shahria Sharmin/Associated Press
    Os irmãos Ashikur e Arifur posam em frente à ponte que dava acesso a sua casa em Bhola, Bangladesh
    Os irmãos Ashikur e Arifur posam em frente à ponte que dava acesso a sua casa em Bhola, Bangladesh

    O lavrador Ajmad Miyah desistiu de vez de se estabelecer novamente. Três anos depois que o mar engoliu sua casa no litoral de Bangladesh, ele ainda não tem nenhuma propriedade ou outras posses e sobrevive trabalhando no campo de outras pessoas em troca de comida.

    "Eu aceitei que essa é a realidade", disse Miyah, um homem magro, de 36 anos, no distrito insular de Bhola, onde o rio Meghna desemboca no golfo de Bengala. "Minha casa vai ser sempre temporária agora, como minha presença na Terra."

    Pelo menos 19,3 milhões de pessoas em todo o mundo foram expulsas de suas casas por desastres naturais no ano passado —90% dos quais relacionados a eventos climáticos, de acordo com o Centro de Monitoramento de Desabrigados Internos com sede em Genebra.

    A maioria dessas pessoas ficou em seus próprios países, incluindo os milhões de desabrigados da nação do delta no sul da Ásia, Bangladesh. Mas, à medida que essas cifras aumentam, mais pessoas vão se sentir obrigadas a cruzar fronteiras internacionais em busca de refúgio seguro. Elas poderiam terminar em um estado de limbo legal, sem direitos nem assistência garantida.

    Um estudo em novembro indicou que entre 470 milhões e 760 milhões de pessoas em todo o mundo poderiam perder suas terras como consequência da elevação dos mares neste século se o aquecimento global continuar sem controle.

    O estudo, feito pela organização de pesquisa e informação Climate Central (central do clima), sem fins lucrativos, analisou dados da população global e projeções da elevação do nível do mar.

    Alguns países como Bangladesh e Filipinas podem perder grandes porções de terra; algumas pequenas nações insulares como as Ilhas Marshall ou as Maldivas podem efetivamente desaparecer.

    O Departamento de Defesa dos EUA considerou a mudança climática "uma ameaça urgente e crescente para a nossa segurança nacional, ao contribuir para o aumento de catástrofes naturais, fluxos de refugiados e conflitos por conta de recursos básicos, como alimentos e água", de acordo com um relatório este ano.

    Mas a mudança climática não transforma uma pessoa em um refugiado, designação dada a pessoas forçadas a deixar seus países de origem por causa de guerras, perseguições ou outros tipos de violência.

    Alguém que estiver em busca de refúgio por conta de um desastre ambiental não pode se candidatar a obter a condição de refugiado, não há proteção estabelecida pela Convenção das Nações Unidas para refugiados e pode ser enviado de volta a seus países de origem, sem questionamentos, a qualquer momento.

    O problema pode permanecer sem resolução ao longo da cúpula de duas semanas em Paris, destinada a estabelecer um novo tratado para limitar o aquecimento global e lidar com seus efeitos. Os EUA estão entre os países que se opõem a que questões migratórias sejam abordadas no acordo.

    "Na verdade, isso está se tornando um desastre em rápido desenvolvimento", disse Harjeet Singh, gerente de política internacional do grupo de defesa Action Aid International. "O mundo ainda não está falando o suficiente sobre a migração climática que vai acontecer."

    INUNDAÇÃO

    Carlon Zedkaia duvida que sua filha de 11 anos possa permanecer em sua casa nas Ilhas Marshall, um grupo de atóis de coral perto do equador no Pacífico, que ficou inundado este ano por uma ressaca acima do normal.

    "Não sei se ela tem um futuro aqui", disse ele. "Se nós, seres humanos, fizermos algo a respeito disso, sobre a mudança climática, então sim, ela pode ter um futuro aqui. Se não, ela pode ter que se mudar para outro lugar, então."

    Alguns dos seus vizinhos já foram embora para o Arkansas, aproveitando um acordo de três décadas que permite aos marshalinos viver, trabalhar e ter acesso à educação no estado norte-americano, que não tem litoral. A maioria dos países vulneráveis, no entanto, não tem essa rede de segurança.

    A Nova Zelândia deportou um homem à sua pequena nação insular de Kiribati, no Pacífico Sul, no início deste ano, depois que a Suprema Corte neozelandesa negou seu pedido —o primeiro do mundo— de asilo como refugiado climático.

    Algumas pessoas em países vulneráveis temem que possam enfrentar a mesma recepção hostil que os refugiados de guerra sírios tiveram em alguns países.

    "O que está acontecendo agora na Europa, com todos esses refugiados, vai ser algo pequeno comparado com o que vai acontecer quando as mudanças climáticas acontecerem de verdade", disse à Associated Press o presidente das Ilhas Marshall, Christopher Loeak, na capital do seu país, Majuro.

    E muitas dessas pessoas acreditam que os países ricos deveriam assumir a maior parte da responsabilidade.

    "O protocolo das Nações Unidas sobre refugiados tem de ser revisto, e a responsabilidade pelos imigrantes da mudança climática tem de ser assumida pelos países desenvolvidos, que são responsáveis pelas emissões do clima", disse Rezaul Karim Chowdhury, chefe da Coast (costa), organização de Bangladesh que visa ajudar pessoas afetadas pela mudança climática. "Essa é uma questão de sobrevivência desses países."

    BANGLADESH

    Bangladesh é considerado um dos países mais vulneráveis às mudanças climáticas. Cientistas estimaram que os mares vão subir em média cerca de um metro neste século. Mas uma elevação de apenas 65 centímetros já engoliria ao redor de 40% das terras produtivas do país, de acordo com especialistas do Banco Mundial que auxiliam Bangladesh a planejar modos de enfrentar essa mudança.

    No entanto, o país não tem um plano específico para lidar com sua própria população desabrigada por conta de desastres relacionados com o clima, a não ser oferecer abrigo temporário. Muitas pessoas rumaram para as favelas superlotadas de Dacca e vivem de forma precária à base de trabalhos de baixa remuneração. Outras vivem em casas sobre palafitas à beira da água, sem saber para ondem podem ir.

    Elas não recebem nenhum benefício dos fundos destinados a ajudar as pessoas a lidar com o aquecimento global, que geralmente não pode ser apontado como responsável por algum desastre relacionado ao clima em particular, embora espera-se que faça com que os padrões climáticos globais se tornem mais imprevisíveis, as chuvas, mais erráticas, e tempestades e secas, mais graves.

    Na ilha de Kutubdia, em Bangladesh, para além de onde o rio Meghna deságua no mar, a água já está rompendo diques de lama e chegando a povoados. O comerciante Mohammed Farid Uddin só pode mostrar o terreno alagado onde antes ficava sua casa. "Se ele continuar a subir, não há certezas sobre para onde vamos ter que ir", disse.

    Seu vizinho, Bebula Begum, 67, passa horas diariamente na tarefa de transportar água de uma bomba de água subterrânea distante. "Às vezes não posso ir buscar água potável e tenho que usar água salgada", disse Begum. "Estamos cercados de água do mar."

    Para um país já superpovoado como Bangladesh —com uma das maiores densidades populacionais do mundo, de quase 2.500 pessoas por 2,6 quilômetros quadrados (ou cerca de 1.000 pessoas por km quadrado—, perder tanta terra é desastroso.

    À medida que o país se torna mais populoso, vão aumentar os estímulos para que os bengaleses desabrigados cruzem a fronteira para a Índia. Mas Nova Déli também não tem planos para lidar com seus próprios cidadãos desabrigados em consequência da mudança climática, muito menos para incluir pessoas de outros países.

    "Alguma coisa tem de ser feita agora. Já estamos vendo as pessoas se movendo", disse Mariam Traore Chazalnoel, especialista em mudança climática e migração da Organização Internacional para as Migrações, com sede em Genebra. Os países industrializados "estão começando a entender que há um papel que eles devem cumprir também".

    PLANO

    Em outubro, as nações pobres e em desenvolvimento conhecidas como o Grupo dos 77 e a China apresentaram uma proposta para as negociações em Paris de elaboração de um plano para migrantes climáticos —um esforço iniciado em 1991, quando a nação insular Vanuatu sugeriu um plano de seguro global para compensar perdas provocadas pelo clima.

    Muitos países industrializados, no entanto, são cautelosos em tratar de migração ou ter de indenizar os afetados pelas alterações climáticas. Os EUA estão acompanhados por outras nações industrializadas, incluindo Japão, Austrália e Suíça, na oposição à inclusão de medidas em matéria de migração no esperado tratado de Paris.

    Mike Roman/Efe
    Imagem mostra uma das enchentes provocadas pelo ciclone Pam em Kiribati, no Pacífico, em março
    Imagem mostra uma das enchentes provocadas pelo ciclone Pam em Kiribati, no Pacífico, em março

    "Acho que do que os países desenvolvidos têm medo é que milhões de pessoas cheguem e batam nas suas portas por causa de desastres climáticos", disse Chazalnoel. "Mas há maneiras de garantir que isso não aconteça" —principalmente por meio de medidas que assegurem que os países possam se adaptar às mudanças ambientais e climáticas de forma que "as pessoas não precisem sair".

    Outros desafios no tratamento da questão incluem a determinação de quem seria considerado um chamado "refugiado climático" e que direitos poderia ter em outros países.

    "Se a migração não for mencionada no tratado de Paris, será um retrocesso, mas não é necessariamente o fim do mundo", disse o especialista em leis Cosmin Corendea, da Universidade das Nações Unidas em Bonn, na Alemanha. "Essa é uma discussão permanente, que não vai morrer."

    A União Europeia continua indecisa sobre se incluir uma disposição sobre migração no tratado de Paris, embora o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, tenha dito em seu discurso do Estado da União, em 9 de setembro, que os "refugiados do clima se tornarão um novo desafio -se não agirmos rapidamente".

    Na ilha de Kutubdia, em Bangladesh, o cenário já é sombrio. "Nossos pais e avós viveram uma vida muito melhor", disse Rahima Begum, de 61 anos, que agora está abrigado temporariamente em um barraco de bambu improvisado. "Tínhamos tanto arroz estocado... Deus jogou tudo fora, no mar."

    [an error occurred while processing this directive]

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024