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    Para filósofo francês, ataque em Paris expôs limites da laicidade republicana

    FERNANDO EICHENBERG
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

    14/12/2015 17h00

    O pensador Michel Maffesoli, reconhecido estudioso da pós-modernidade, credita grande parte dos conflitos atuais na sociedade francesa a uma inabilidade em acolher o retorno do sagrado e do religioso, que na falta de espaços de expressão gera desvios perversos e favorece a sedução de jovens pelo islamismo radical.

    Na sua opinião, a laicidade francesa não soube integrar o religioso de forma harmônica e em "doses homeopáticas", segundo sua própria metáfora.

    Para ele, que lançou neste mês, em coautoria com Hélène Strohl, o ensaio "La France Étroite - face au intégrisme laïc, l'idéal communitaire" ("a França estreita - diante do integrismo laico, o ideal comunitário", em tradução livre), a França vive hoje um delicado momento de mutação, rumo a uma sociedade concebida como um mosaico de culturas, em detrimento da República "una e indivisível" dos tempos modernos.

    Ulises Ruiz - 18.abr.2006/Efe
    O sociólogo francês Michel Maffesoli em conferência no México, em 2006
    O sociólogo francês Michel Maffesoli em conferência no México, em 2006

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    Folha - Você aponta a rejeição do sagrado e do religioso como questão crucial nos problemas vividos hoje pela França. Por quê?
    Michel Maffesoli - Uma das especificidades dos tempos modernos –que começa no século 17 e termina na metade do século 20– foi o o racionalismo como grande elemento fundamental.

    Foi o rolo compressor da razão sobre todos os outros aspectos da vida social. E em particular –e aqui retomo uma ideia do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920)– o famoso desencantamento do mundo: remove-se o sagrado, o religioso, tudo o que não é simplesmente racional, é a grande tendência.

    Parece-me que um dos elementos de nossas sociedades contemporâneas é o retorno do sagrado. Quando não sabemos gerir o sagrado, ele tende a retornar de uma forma perversa, não controlável.

    E os acontecimentos do 13 de novembro em Paris, o jihadismo em geral, são um fanatismo estimulado pela evacuação total do sagrado.

    Um número de jovens desta nova geração, não encontrando mais uma expressão do sagrado, se exprime de uma maneira paroxística, sanguinária, perversa. Por ter-se desejado em demasia querer evacuar a dimensão religiosa, esta dimensão se fanatiza.

    Como foi o caso nos séculos 3º e 4º de nossa era, o cristianismo em seu momento nascente funcionava sobre o mártir. Era a reivindicação forte do cristianismo em seu nascimento. E, de uma certa maneira, este fanatismo assume formas semelhantes contemporâneas.

    Você defende uma maior aceitação do sagrado pela sociedade?
    As sociedades equilibradas –e penso que neste sentido o Brasil seja um dos laboratórios da pós-modernidade– são as que conseguem "homeopatizar" o sagrado, para utilizar uma metáfora; ou seja, integrá-lo, mas de forma homeopática.

    Particularmente na França, em nome da laicidade, de todos estes valores laicos que são uma das grandes especificidades da sociedade francesa, rejeitou-se ritualizar, integrar, homeopatizar este sagrado.

    E quando ele não pode se exprimir de uma forma natural, por meio de cerimônias e manifestações similares, ele ressurge de maneira perversa.

    Em latim, "perverso", em sua etimologia, quer dizer "vias desviadas". O fanatismo é perverso para parte destas jovens gerações, que, com o retorno do religioso e a busca de grandes ideais, sem encontrar uma forma de se expressar, vão se engajar no jihadismo.

    Pedro Diniz - jan.2015/Folhapress
    A estudante Marwa Daabak, 20, muçulmana de origem tunisiana, que teve o lenço puxado, no metrô de Paris (França). Marwa foi abordada por pessoas por usar seu véu "Hijab" (lenço usado por mulheres mulçumanas). Após os ataques ao jornal satírico "Charlie Hebdo", moças muçulmanas relatam agressões no metrô parisiense. (Foto: Pedro Diniz/Folhapress)
    Marwa Daabak, 20, muçulmana de origem tunisiana, que teve o seu hijab puxado no metrô de Paris

    De que forma isso ocorre?
    Por exemplo. Há 15 dias, escutei uma entrevista na TV de um jovem francês da Normandia que se havia convertido ao islã e partido para a Síria. Ele voltou para a França sem se arrepender do que fez.

    Ele explicava que no fundo tinha necessidade do absoluto, de um ideal, e não encontrava isso no laicismo e no racionalismo franceses. Por diversas razões e diversas maneiras, ele entrou em contato com o islã integrista e partiu, não para fazer a guerra, mas por esta sede pelo infinito, pelo desejo de um grande ideal religioso.

    E as consequências disso são perversas, lá eles são aliciados, educados para a guerra e para o massacre. Mas digo que isso ocorre em parte porque não soubemos encontrar esta forma homeopática de bem ou mal integrar o sagrado.

    Você não condena a laicidade em si, mas diz que ela foi longe demais?
    Na origem da laicidade estava uma forma de tolerância, de relativização das religiões, que acabou se tornando um integrismo.

    Há esta fórmula de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que acho interessante e diz que "o fanatismo ateu conforta o fanatismo devoto".

    Como não soubemos integrar de forma homeopática o sagrado, vemos estes desvios perversos da radicalização islâmica. O integrismo laico tem tendência a confortar o fanatismo religioso, como o jihadismo, o islamismo integrista.

    Como você vê o contexto pós-atentados de Paris, com a reação à tragédia por meio de medidas de segurança mais rigorosas, um maior controle das fronteiras e a intensificação dos bombardeios na Síria, além da apropriação dos acontecimentos pela extrema direita?
    Há duas coisas.

    Primeiro, o que é legítimo, o trabalho dos poderes públicos, de dar mais segurança e controle tendo em vista o que se passou.

    É normal esta maior atenção à segurança pelas instituições, o que, aliás, não havia sido feito até agora.

    Houve uma certa tolerância e laxismo, e agora François Hollande está virando a casaca.

    Os socialistas estão se dando conta de que, haja vista o perigo dos integristas islâmicos, é necessário um pouco mais rigor na segurança. Por um momento haverá este quadro, como o estado de emergência etc.

    O segundo elemento é este tipo de resposta popular, de resistir, sair à rua, houve este chamado nas redes sociais, "todos ao bistrô", por exemplo.

    Há o reforço da segurança por parte das instituições. E ao mesmo tempo é interessante ver que diante das ameaças contra o savoir-vivre francês, o prazer de estar em Paris, há uma resistência popular em não se deixar totalmente aterrorizar pelos terroristas. É uma reação vitalista. "Vamos ao teatro", "vamos ao cinema". O massacre é algo duro, mas há uma resistência à intolerância.

    Há o risco de que estes atentados possam aumentar a tensão e a intolerância no país entre diferentes comunidades?
    Este é um outro problema. Minha hipótese a longo prazo é a de que nossa sociedade, mesmo que a França não esteja muito habituada a isso, será um mosaico de diferenças.

    Não se pode mais funcionar no esquema jacobino piramidal de um só valor. Eu emprego a imagem do mosaico como tradução disso.

    A França vai reviver a ideia do mosaico, que historicamente era o que havia no início, na fundação do país. Não se pode esquecer que, nos séculos 8º e 9º, a multiplicidade de diferentes culturas diferentes originou a França. Mas, por algum tempo, levando em conta o perigo potencial que representa o islamismo radical, vai-se ver um medo crescente em relação aos muçulmanos, ou seja, um medo em relação à diferença.

    É difícil avaliar quanto tempo isso irá durar. Mas é certo que será um dos elementos não negligenciáveis nos próximos dois ou três anos.

    Como você vislumbra este mosaico futuro? Será o fim dos valores da República?
    Não. O conceito de uma República una e indivisível foi elaborado ao longo do século 19. Mas assinalo que é uma concepção formulada em 1848.

    Penso que haja uma saturação desta concepção unificante da República. E que estamos fazendo o aprendizado da "res publica", em latim, a "coisa pública".

    Na Roma antiga, correspondia ao ajustamento de culturas diferentes. Estamos hoje passando de uma situação homogênea, a República una e indivisível, para uma construção em mosaico de pluralidade.

    Os momentos de mutação, de metamorfose, são sempre difíceis. Temos um momento hoje complicado, tornado ainda mais delicado pela expressão deste fanatismo islâmico. Mas o que me surpreende neste contexto é ver como as jovens gerações são bastante tolerantes e aceitam com mais facilidade as diferenças. E são elas que amanhã vão construir a res publica.

    As gerações institucionais, que estão atualmente no poder, permanecem na concepção de valores republicanos unos e indivisíveis, em uma verdadeira defasagem com as novas gerações, para as quais a realidade é algo mais complexo. E penso que neste sentido haja uma verdadeira evolução.

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