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    Impunidade beneficia linchadores de afegã inocente morta em santuário

    ALISSA J. RUBIN
    DO "NEW YORK TIMES", EM CABUL (AFEGANISTÃO)

    28/12/2015 12h13

    Reprodução
    Assassinato de mulher comoveu o país
    Farkhunda foi atacada no centro da capital afegã

    Farkhunda teve uma chance de escapar da turba que queria matá-la. Dois policiais afegãos a puxaram para o telhado de um galpão, fora do alcance da multidão raivosa.

    Mas os homens enfurecidos buscaram postes e tábuas para bater nela, até que ela não conseguiu mais se segurar e despencou para o chão.

    Farkhunda tentou se levantar, com o rosto ensanguentado. Erguendo as mãos para os cabelos, pareceu horrorizada ao descobrir que seus agressores tinham arrancado seu hijab preto. A turba a cercou, chutando-a e pisoteando seu corpo frágil.

    Lynsey Addario - 15.out.2015/The New York Times
    Afegãos oram no santuário Shah-e-Do Shamshira, em Cabul, onde Farkhunda Malikzada foi morta
    Afegãos oram no santuário Shah-e-Do Shamshira, em Cabul, onde Farkhunda Malikzada foi morta

    Farkhunda Malikzada tinha 27 anos, estudava o islamismo e foi acusada de queimar um Alcorão em um santuário muçulmano.

    O suplício de suas últimas horas de vida chocou afegãos em todo o país, porque muitos de seus assassinos filmaram uns aos outros espancando-a e publicaram nas redes sociais as imagens de seu corpo massacrado.

    Centenas de outros homens assistiram ao linchamento, segurando seus telefones ao alto para tentarem enxergar a violência e não fazendo nenhum gesto para intervir. Entre os que ficaram assistindo sem nada fazer havia vários policiais.

    Diferentemente de tantos atos de violência contra mulheres afegãs que são cometidos a portas fechadas, o assassinato de Farkhunda, em março, desencadeou repúdio nacional.

    Isso porque Farkhunda não queimou um Alcorão. Em vez disso, como revelou uma investigação, ela desafiou homens que, eles sim, estavam desonrando o santuário com a venda ilegal de amuletos e, de modo mais clandestino, Viagra e camisinhas.

    IMPUNIDADE

    Inicialmente, o julgamento e condenação dos acusados pareceram representar uma vitória na longa luta para que os direitos das afegãs sejam respeitados na Justiça. Mas um olhar mais profundo sugere algo diferente.

    Um vidente que, segundo vários investigadores, teria sido quem desencadeou o linchamento foi inocentado depois de recorrer de sua condenação. O guardião da mesquita, que fez a acusação falsa de queima do Alcorão e incitou a multidão, teve sua pena de morte revogada.

    Lynsey Addario - 16.out.2015/The New York Times
    Uma bandeira com a imagem da afegã Farkhunda Malikzada foi colocada em seu túmulo, em Cabul
    Uma bandeira com a imagem da afegã Farkhunda Malikzada foi colocada em seu túmulo, em Cabul

    Os policiais que deixaram de enviar ajuda a Farkhunda e outros que assistiram ao linchamento dela sem intervir receberam, no máximo, castigos insignificantes. Alguns dos agressores identificáveis nos vídeos não foram detidos.

    Advogados afegãos e defensores dos direitos humanos concordam que a maioria dos réus não tiveram julgamentos justos. Temendo represálias e prevendo que os assassinos não seriam punidos, a família de Farkhunda abandonou o país.

    A morte de Farkhunda e a resposta do sistema judiciário põem em dúvida mais de uma década de esforços ocidentais no Afeganistão para instituir um Estado de direito e melhorar a situação das mulheres.

    Os Estados Unidos já gastaram mais de US$ 1 bilhão (R$ 3,95 bilhões) para treinar advogados e juízes e melhorar as proteções legais para as mulheres, e países europeus deram dezenas de milhões de dólares. Mas, como é o caso de tantas outras tentativas ocidentais de reconstruir o Afeganistão, esses esforços fracassaram.

    O Afeganistão ainda é um país onde os laços de parentesco e as relações entre clãs falam mais alto que a Justiça e onde o dinheiro trazido pelo Ocidente converteu a corrupção em modo de vida.

    Muitos dos programas para instituir o Estado de direito foram traçados sem conhecimento das normas legais afegãs, dizem advogados afegãos e internacionais. E os esforços ocidentais para melhorar o status legal das mulheres foram repudiados por figuras religiosas poderosas e por muitos cidadãos afegãos comuns.

    No entanto, as afegãs precisam do sistema legal para sua proteção: sem o apoio de familiares homens, elas não têm poder praticamente nenhum, e seus agressores normalmente são pessoas de suas próprias famílias.

    "Onde está a justiça?" perguntou Mujibullah Malikzada, o irmão mais velho de Farkhunda, sentado em um apartamento quase sem mobília no Tadjiquistão.

    "Em meu país islâmico, uma moça foi desrepeitada, linchada e queimada de modo desonroso, e o que aconteceu? Tivemos que abandonar nossa casa. Nunca prenderam os responsáveis. O que podemos fazer?"

    Como último recurso, a família de Farkhunda apresentou um recurso à Suprema Corte afegã, que possui poderes amplos para impor novas sentenças ou ordenar um novo julgamento. A decisão ainda está pendente.

    "Se for feita justiça para ela, todas as mulheres no Afeganistão que foram agredidas, assassinadas ou maltratadas terão justiça", disse Leena Alam, atriz de televisão afegã que se juntou a centenas de outras mulheres no funeral de Farkhunda para carregar seu caixão, desafiando a tradição.

    "Se não for, então todos estes anos de presença da comunidade internacional, todo o apoio que ela deu, todo o dinheiro, esta guerra, tudo isso não terá valido nada. Terá tudo sido desperdiçado."

    LINCHAMENTO

    O santuário de Shah-Do Shamshira tem o nome de um guerreiro estrangeiro que teria ajudado a levar o islamismo ao Afeganistão. Farkhunda foi ao lugar pela primeira vez quatro semanas antes de morrer.

    Era uma quarta-feira, o dia das mulheres no santuário, quando homens não são autorizados no local. As mulheres contam umas às outras sobre seus problemas.

    Elas vão ao vidente para comprar amuletos para ajudá-las a engravidar, encontrar um marido ou ter filhos homens. Conhecidos como "tawiz", os amuletos geralmente consistem de textos escritos em papeizinhos que a mulher pode prender à sua roupa com um alfinete ou guardar no bolso.

    Farkhunda ficou chocada ao ver como eram exploradas as superstições das mulheres, contou seu irmão Mujibullah. Ela confrontou o guardião do local, Zainuddin, e o vidente, Mohammad Omran, e disse: "Vocês estão explorando as mulheres. Estão cobrando dinheiro delas por uma coisa que não é islâmica, que é contra a religião."

    Lynsey Addario - 17.out.2015/The New York Times
    Zainuddin, guardião do templo em Cabul, teve sua pena de morte reduzida para 20 anos de prisão
    Zainuddin, guardião do templo em Cabul, teve sua pena de morte reduzida para 20 anos de prisão

    Quando o ambiente no santuário ficou tenso, disse Mujibullah, "o guardião falou à minha irmã: 'Quem diabos você pensa que é? Quem é você para falar estas coisas? Suma daqui!'."

    Farkhunda tinha razão: havia algo de errado no santuário. Segundo Shahla Farid, membro do comitê de inquérito criado pelo presidente Ashraf Ghani após o linchamento, os investigadores da polícia e do Diretório Nacional de Segurança, o serviço de inteligência, descobriram mais tarde que o vidente, quase certamente com a ajuda do guardião, estava vendendo Viagra e camisinhas de modo ilegal.

    A última coisa que o vidente queria era ver uma jovem, movida pelo fervor religioso, atrapalhando seu ganha-pão.

    No dia 19 de março, o último dia de sua vida, Farkhunda voltou ao santuário. Farid, que também é professor de direito da Universidade de Cabul, disse que, depois de falar às mulheres presentes no local que os amuletos eram inúteis, ela juntou alguns dos amuletos usados e pode ter posto fogo a eles numa lata de lixo.

    "O guardião, Zainuddin, era analfabeto. Ele pegou os papéis queimados, os juntou a algumas páginas de uma cópia queimada do Alcorão e mostrou isso a pessoas que estavam diante da mesquita, como prova de que Farkhunda teria posto fogo ao Alcorão", disse Farid.

    Muhammad Naeem, que vende comida para pombos do outro lado da rua, contou ter ouvido o guardião chamando pessoas que passavam diante da mesquita, dizendo: "Uma mulher pôs fogo ao Alcorão. Não sei se ela está doente ou mentalmente perturbada, mas que espécie de muçulmanos vocês são? Defendam seu Alcorão!"

    Os vídeos mostram Farkhunda primeiro gritando de dor quando é chutada. Depois seu corpo começa a se contorcer ao ser golpeado, e em pouco tempo ela fica imóvel. Mesmo quando a turba a arrasta para a rua e faz um carro passar por cima dela, a polícia não faz nada.

    Nesse momento ela já estava reduzida a uma massa de sangue e ossos cobertos de roupa. Mesmo assim, mais pessoas vieram espancá-la.

    Um dos mais fervorosos foi um rapaz chamado Mohammad Yaqoub, funcionário de uma ótica. Ele ouviu a multidão quando Farkhunda foi arrastada atrás do carro e saiu para a rua, ansioso por participar.

    Lynsey Addario - 17.out.2015/The New York Times
    Mohammad Yaqoub originalmente foi sentenciado à pena de morte, mas cumprirá dez anos de prisão
    Mohammad Yaqoub originalmente foi sentenciado à pena de morte, mas cumprirá dez anos de prisão

    Oito meses depois, bem-vestido e com barba e bigode curtos, Yaqoub não aparentava ser alguém capaz de violência. Mas os vídeos o mostram em um momento de ferocidade assustadora.

    "As pessoas estavam dizendo 'se alguém não bate nela é porque é não é muçulmano'. Foi quando eu fui levado pela emoção e bati nela duas vezes", ele disse em entrevista dada no presídio de Pul-i-Charkhi, a leste de Cabul.

    VEREDICTOS REVOGADOS

    Dois dias depois do linchamento, o Ministério do Hajj e dos Assuntos Religiosos anunciou que Farkhunda era inocente. Em pouco tempo, ela foi transformada em uma causa. Vídeos de sua morte foram transmitidos pela televisão afegã, provocando reações de vergonha entre muitos cidadãos.

    Por ordem do Ministério dos Assuntos do Interior, a polícia acabou detendo mais de 50 pessoas, 49 das quais (incluindo 19 policiais) foram a julgamento.

    O juiz nomeado para presidir o julgamento, Safiullah Mujadidi, agiu com presteza. Os promotores entregaram seu arquivo completo aos juízes em 27 de abril e o julgamento teve início cinco dias depois.

    Quando o julgamento começou, menos de sete dos 49 réus tinham contratado advogados de defesa. Nem todos os advogados foram informados da data ou horário do julgamento, disseram vários deles, e apenas três ou quatro estiveram presentes.

    Poucos deles tiveram acesso aos documentos compilados pela promotoria antes de o julgamento começar, de modo que, segundo eles, não tiveram condições de preparar uma defesa para seus clientes.

    Mujadidi, que desde então foi nomeado assessor da Suprema Corte, disse que participou de treinamentos dados por vários programas americanos e um alemão sobre a instituição do Estado de direito. Para ele, "a decisão à qual chegou o tribunal primário foi de acordo com a lei e deu justiça".

    Yaqoub foi um dos quatro réus condenado à morte. Os outros são Zainuddin, o guardião do santuário; Sharaf Bhaglani, ex-funcionário do serviço de inteligência afegão que gabou-se no Facebook de sua participação no assassinato de Farkhunda, e Abdul Basheer, um motorista.

    Lynsey Addario - 16.out.2015/The New York Times
    Sayed Amir, tio de Farkhunda, ao lado do minarete construído para colocar no túmulo de sua sobrinha
    Sayed Amir, tio de Farkhunda, ao lado do minarete construído para colocar no túmulo de sua sobrinha

    Oito outros réus foram condenados por participação importante no assassinato de Farkhunda e foram sentenciados a 16 anos de prisão cada um. Os outros 18 réus civis foram absolvidos por falta de provas.

    Dos réus policiais, oito tiveram as acusações arquivadas e 11 receberam as sentenças mais leves possíveis: foram instruídos a continuar a trabalhar em seus distritos policiais respectivos por um ano e proibidos de viajar.

    O veredicto do tribunal foi saudado como positivo por defensores de Farkhunda, mas os advogados de defesa protestaram em nome de seus clientes.

    Observaram que ninguém se deu ao trabalho de determinar a hora da morte de Farkhunda. Pelas leis afegãs, a pena por profanar um corpo é muito mais leve que a pena por homicídio.

    O advogado de Yaqoub apresentou um documento de identidade segundo o qual seu cliente teria sido menor de idade no momento do crime. O juiz acreditou que o documento fosse falsificado, mas o tribunal de apelações considerou Yaqoub menor de idade e comutou sua pena para dez anos de prisão.

    O argumento segundo o qual não havia evidências que comprovassem a autoria do golpe que matou Farkhunda fez sentido para o tribunal de apelações e a Suprema Corte, segundo pessoas próximas dos tribunais. Por isso os juízes comutaram as outras três sentenças de morte para penas de 20 anos de prisão.

    Os juízes reviram as evidências de que o vidente não teria estado presente no santuário quando Farkhunda foi morta e assim o absolveram. Exoneraram o nono policial, de modo que, no final, apenas dez policiais sofreram medidas disciplinares.

    De acordo com os advogados Najla Raheel e Zaki Ayoubi, que se somaram à equipe legal que representa a família de Farkhunda, a equipe legal nomeada pelo presidente Ghani decidiu que houve tantas falhas no julgamento que a única saída justa seria pedir à Suprema Corte que ordenasse um novo julgamento.

    Lynsey Addario - 15.out.2015/The New York Times
    Afegãos oram no templo Shah-e-Do Shamshira, em Cabul, onde Farkhunda Malikzada foi morta
    Afegãos oram no templo Shah-e-Do Shamshira, em Cabul, onde Farkhunda Malikzada foi morta

    O pedido de novo julgamento foi feito em agosto, e a Suprema Corte ainda não anunciou sua decisão. A corte, que tem grande liberdade para aumentar, reduzir ou anular penas impostas, muitas vezes simplesmente confirma decisões dos tribunais de apelações ou envia processos para serem revistos para eles.

    Nenhum dos advogados entrevistados para este artigo conseguiu citar uma ocasião em que um processo tivesse tido um novo julgamento.

    A família de Farkhunda começa a temer que nunca haverá uma decisão judicial e que ela seja esquecida. Numa sexta-feira recente, as únicas pessoas perto do túmulo dela eram quatro crianças do bairro que brincam no cemitério.

    Todas as crianças conheciam seu nome. Ishaq, 6 anos, disse: "Seu nome é Farkhunda. Ela pôs fogo ao Alcorão, por isso foi castigada e linchada."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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