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    Família de menino afogado a caminho da Europa é símbolo do desespero sírio

    ANNE BARNARD
    DO "NEW YORK TIMES", EM ISTAMBUL

    29/12/2015 07h00

    Quando o cadáver do pequeno Alan Kurdi foi arrastado pelo mar a uma praia da Turquia, forçando o mundo a encarar o sofrimento dos refugiados sírios, o menino de dois anos de idade era só mais um membro de uma família fugitiva, dispersada pelos cinco anos de tumultos.

    No momento em que um guarda turco recolhia o menino levado à praia pelas ondas do Mediterrâneo, um dos primos adolescentes de Alan estava sozinho em um ônibus na Hungria, fugindo dos combates em sua cidade natal, Damasco.

    Uma tia não podia sair de Istambul porque estava amamentando um bebê, e seu filho e filha trabalhavam 18 horas por dia em uma fábrica que desrespeita as normas trabalhistas, a fim de garantir a comida da família. Dezenas de outros parentes haviam fugido da guerra na Síria ou estavam preparando planos de fuga.

    E só algumas semanas depois que a imagem de Alan chocou o mundo, em setembro, outra tia estava se preparando para fazer algo que havia se prometido evitar: embarcar com seus quatro filhos pequenos no mesmo trajeto.

    "Ou todos morremos juntos ou sobreviveremos e teremos futuro", disse uma de suas filhas, uma menina de 15 anos, concluindo, como centenas de milhares de outros sírios, que voltar atrás era impossível.

    Alan, cuja mãe e irmão se afogaram com ele, pertencia a um numeroso clã da oprimida minoria curda da Síria. Mas para a maioria de seus parentes próximos, essa identidade era secundária se comparada ao espírito cosmopolita da capital síria, Damasco, onde eles se criaram.

    Os membros da família mal falavam curdo, se identificavam primordialmente como sírios e não eram membros de qualquer facção. Assim, quando a guerra irrompeu, e conexões políticas, sectárias e étnicas se tornaram questão de vida e morte, a família não tinha a quem recorrer.

    Entrevistas com 20 dos membros da família, na região curda do Iraque, em Istambul, em cinco cidades da Alemanha e, por telefone, na Síria, narram a história de uma família destroçada por diversos atores do conflito sírio: o governo da Síria, o Estado Islâmico, os países vizinhos, o Ocidente.

    Desde a morte de Alan, pelo menos outras cem crianças se afogaram no Mediterrâneo. Um milhão de refugiados e emigrantes entraram na Europa este ano, metade dos quais sírios, parte da dispersão de um país do qual metade da população fugiu.

    Abdullah, 39, o pai de Alan, às vezes se culpa, e deseja o poder de voltar no tempo, para não embarcar naquela viagem. Ele estava tentando pilotar a embarcação, em condições caóticas, quando ela naufragou.

    Mas mesmo para Hivrun, irmã de Abdullah, que estava chorando a perda do sobrinho, o cálculo levou à conclusão de que seria necessário colocar seus filhos em risco a fim de salvá-los.

    Semanas depois da morte de Alan, ela tentou uma vez mais partir para a Alemanha. E uma vez mais ela e os filhos embarcaram em um bote de borracha.

    RAÍZES CURDAS

    O avô de Alan nasceu em Kobani, uma área majoritariamente curda perto da fronteira síria com a Turquia, ao norte.

    Depois do serviço militar obrigatório, ele se mudou para Damasco em busca de emprego, e se radicou em Rukineddine, um bairro majoritariamente curdo, nas encostas do Monte Qasioun. Abriu uma barbearia e se casou com uma mulher curda que se via como superior a todos os damascenos.

    O casal teve seis filhos. Eles recordam levar uma vida modesta e não muito afetada pelas tensões entre o governo e os curdos. Os verões da família eram passados colhendo azeitonas em Kobani, mas eles se viam como garotos de cidade.
    A maioria deixou a escola ao concluir o nono grau, para aprender a profissão da família: cortar cabelos.

    Fatima, a filha mais velha, foi a primeira a emigrar. Em 1992, ela se mudou para o Canadá, onde se casou com um curdo do Iraque. Os dois logo se divorciaram e ela ficou com a responsabilidade de criar o filho. Trabalhando no turno da noite em uma gráfica, Fatima atraiu a atenção de uma chefe amável.

    "Ela me disse que a cada noite me ensinaria 10 palavras em inglês", recordou Fatima, mais conhecida como Tima, recentemente. "O resto aprendi de tanto assistir 'Barney' com meu filho".

    O domínio de inglês permitiu que ela conseguisse licença como cabeleireira, e levou a empregos em salões de beleza finos e à conquista da cidadania canadense —sucessos que tornaram possíveis as jornadas subsequentes de sua família.

    Fatima, uma mulher de presença marcante, se tornou, para os irmãos, a principal fonte de conselhos, informações e dinheiro para emergências. Quando a guerra irrompeu, ela se tornou a mais ferrenha defensora deles.

    O conflito se expandiu a Damasco no segundo trimestre de 2011, o exato momento em que Abdullah Kurdi estava criando uma família com sua mulher, Rihan, uma prima oriunda de Kobani.

    Quando começaram a se espalhar os protestos contra o governo do presidente Bashar Assad, inspirados por outros levantes árabes. Rihan voltou a Kobani para o parto de Galib, o irmão mais velho de Alan. Abdullah se deslocava entre os dois locais, enquanto trabalhava na barbearia da família em Damasco.

    Alguns dos membros da família Kurdi inicialmente simpatizavam com as manifestações, mas a maioria da família evitou envolvimento. O governo tomou medidas repressivas em toda a Síria, e o bairro rapidamente começou a sofrer pressão.

    As forças de segurança, que sempre tiveram o poder de deter pessoas sem mandado judicial, se tornaram mais impacientes, e não demoraram a começar a tomar os curdos, ou outros grupos sem conexões políticas, como bodes expiatórios.

    No começo, os problemas eram simplesmente econômicos. Não havia muitos empregos em Kobani. Abdullah continuou trabalhando em Damasco, enquanto sua mulher cuidava de Galib e, mais tarde, de Alan.

    Uma cunhada, Ghousoun, e sua família viveram por algum tempo em um estábulo para ovelhas; ela ganhava dinheiro como ambulante, vendendo roupas em Damasco.

    Em seguida surgiu uma nova ameaça. Os extremistas do Estado Islâmico se dissociaram dos demais grupos que combatiam Assad, declararam um Estado e tomaram os curdos e outras minorias como vítimas.

    As jornadas de Ghousoun se tornam perigosas. O fato de falar árabe sem sotaque e se vestir de forma conservadora ocultava sua origem curda nos postos de controle do Estado Islâmico, mas levava os soldados nos postos de controle curdos a desconfiar dela.

    Em setembro de 2014, o Estado Islâmico começou a bombardear Kobani com artilharia. Surgiram rumores de que os extremistas estavam preparando um ataque. Muitas famílias fugiram para a Turquia.

    A família Kurdi passou dias buscando um ponto de travessia, em companhia de centenas de outros curdos. Por fim, o grupo tentou forçar a fronteira. A polícia turca forçou a maior parte do grupo a retornar, mas uma mulher curda do lado turco da fronteira ocultou a família de Ghousoun em sua manjedoura.

    De volta a Kobani, as oliveiras do clã Kurdi foram incendiadas, suas casas destruídas e 18 parentes massacrados.
    Muitos dos sobreviventes conseguiram chegar a Istambul, onde novos sofrimentos surgiram.

    Abdullah encontrou emprego em uma fábrica de roupas de Istambul, onde também dormia, e com isso conseguia enviar dinheiro para a família. Mas quando a mulher e filhos se juntaram a ele, a carga se tornou pesada demais.

    Os únicos apartamentos cujo aluguel ele conseguia pagar ficavam longe demais do trabalho, e por isso teve de deixar o emprego e passou a carregar sacas de cimento de 90 quilos, trabalhando 12 horas e recebendo US$ 9 por dia.

    Galib e Alan pulavam em sua cama para abraçá-lo a cada manhã, antes que ele lhes aplicasse uma pomada contra eczemas, um ritual muito importante para Abdullah mesmo que o custo do medicamento o preocupasse.

    "Eles ficavam sentados em casa o dia todo", ele conta, tentando segurar as lágrimas. "E a única coisa pela qual esperavam era eu".

    OS PRIMEIROS

    Hivrun e seu marido foram os primeiros a partir com os filhos mar afora. Levaram seus quatro filhos e um sobrinho adulto a Esmirna, ao sul de Istambul, o principal polo de contrabando de pessoas da Turquia.

    Contrabandistas os embarcaram em furgões, os deixaram em uma área arborizada para ocultá-los da polícia e depois os embarcaram em uma traineira cujo destino era uma ilha grega a alguns quilômetros de distância, mas o motor da embarcação quebrou. A viagem só foi cancelada porque Hivrun protestou.

    Na tentativa seguinte, eles já estavam no mar quando a embarcação começou a fazer água. Hivrun viu um barco da Guarda Costeira turca e gritou pedindo ajuda, e não parou de gritar mesmo quando os demais passageiros, que preferiam correr o risco, tentaram calá-la com sussurros raivosos.

    O marido de Hivrun e seus filhos mais velhos queriam tentar de novo. Hivrun recusou. Levou os filhos de volta a Istambul, e seu marido e sobrinho partiram para a Grécia.

    Pouco depois, Abdullah tentou a viagem, com sua família. "Havíamos decidido ir para o Paraíso", explicou Abdullah —uma vida melhor, seja na Europa ou no além.

    Poucas horas depois do afogamento de Alan, Abdullah, angustiado, contou a história. Ele havia tentado segurar Galib e Alan, e pedido à mulher que mantivesse a cabeça do menino fora da água. Mas os três se afogaram, um a um.

    No frenesi de mídia que se seguiu, Fatima, a tia de Alan que vive no Canadá, correu a agir.

    De sua casa perto de Vancouver, ela atendeu a telefonemas de muitas organizações noticiosas, e culpou a burocracia canadense e a indiferença do mundo pelo desastre. Não demorou para que ela estivesse viajando pela Europa, falando em defesa dos refugiados.

    "Quando essas crianças nasceram, a guerra já tinha começado", lembra ter dito a António Guterres, o alto comissário da ONU para refugiados. "E morreram com a guerra ainda em curso".

    Sua mensagem franca incentivou os países ocidentais —por pelo menos um curto período— a abrir as portas aos sírios. Mas nada disso mudou o cálculo para a família Kurdi.

    PAI

    Poucas semanas depois da tragédia, Abdullah —desconfortável, parecendo deslocado— estava sentado no sofá de um piano bar em um hotel decorado por frisos dourados em Irbil, na região curda do Iraque.

    O mar roubou todos os traços de sua identidade - seus documentos, os números de telefone de sua irmã, até mesmo suas dentaduras. "Tornei-me uma sombra", disse Abdullah.

    Depois de sepultar a família em Kobani —três túmulos cavados em uma planície sem árvores—, ele foi enviado a Irbil pelo poderoso clã Barzani. Abdullah decidiu usar a atenção que sua tragédia havia despertado para ajudar outros sírios, e os Barzani estavam prometendo ajuda.

    Ele mal compreende curdo, mas mesmo assim participou de reuniões com os ricos e poderosos, levou assistência a campos de refugiados, e desfrutou da felicidade de brincar com as crianças lá alojadas. Mas muitas vezes parecia atordoado.

    Abdullah telefonou a Fatima, sua irmã canadense, que estava recolhendo as posses da família em Istambul. Ela estava a caminho para visitá-lo, uma ideia que o animava.

    Pediu que ela levasse a ele o cachorro de pelúcia ("aquele que tem a língua de fora") preferido dos filhos, ou o boneco dos Teletubbies que havia perdido um olho e ele prometera consertar. "Quero alguma coisa com o cheiro deles", disse Abdullah.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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