• Mundo

    Tuesday, 14-May-2024 18:00:00 -03

    Para esquerdistas, cenário na América do Sul não representa fim de ciclo

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    02/01/2016 02h00

    Derrota na eleição presidencial argentina, perda da maioria no congresso venezuelano, discussão do impeachment no Brasil. Os três eventos estão relacionados e indicam o início do fim do ciclo de governos mais alinhados à esquerda na América do Sul?

    Vozes da esquerda buscam explicações para o momento. Alguns o vinculam ao esgotamento do período de alta das commodities, que ajudou a impulsionar planos governamentais. Outros acham precipitado decretar o encerramento de uma era.

    Pedro Ladeira - 17.jul.2015/Folhapress
    No primeiro plano: Cristina Kirchner, Horácio Cartes, Dilma Rousseff e Nicolás Maduro, no Itamaraty
    No primeiro plano: Cristina Kirchner, Horácio Cartes, Dilma Rousseff e Nicolás Maduro, no Itamaraty

    REVESES

    Reveses ocorrem, apesar de programas de inclusão e ascensão social muito semelhantes em diversos países. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência (governo Lula), levanta uma hipótese:

    "A população não reconhece que a melhoria de seu estado de vida decorreu dos programas sociais. Por uma razão humana razoável, a pessoa gosta de melhorar e achar que é resultado do mérito individual. Há razões religiosas, conservadorismo", diz.

    "No Brasil, se perguntarem aos que ascenderam [sobre as razões de melhoria de vida] a resposta primeira será Deus. Depois, o próprio esforço, a família. Em último lugar vêm os programas sociais. Não enxergam a ascensão como resultado delas. As pessoas que entram na universidade pública não percebem que ali há uma política governamental", observa.

    Para ele, "existe uma ação externa também". Na sua análise, os governos neoliberais e as ditaduras do passado no continente "beneficiaram enormemente empresas estrangeiras. Os novos movimentos na região, em diferentes graus, descontentaram as classes hegemônicas nos países desenvolvidos".

    Assim, conforme Guimarães, "esses interesses mobilizam as suas forças para retomar as relações que consideram mais interessantes para eles. Seria uma loucura dizer que os países desenvolvidos querem ter relação mais benéfica para os países subdesenvolvidos. Contraria tudo que se conhece da história do mundo".

    "Os países desenvolvidos mobilizam suas agências de inteligência, a imprensa favorável ideologicamente para modificar as políticas desses governos. No passado, isso era feito com golpe de Estado aberto. Hoje é um pouco mais complexo", declara.

    E o que acontece hoje na América do Sul, "tem a ver com a ação norte-americana", afirma. O diplomata defende que as estratégias têm um roteiro:

    "Primeiro, demonizar o país, dizer que é ditadura. Depois, falar que aquela ditadura é corrupta, portanto contra o povo. Terceiro, se possível, como foi no caso da Venezuela, ligar com o narcotráfico. Lá não conseguiram, mas colocaram a ideia no imaginário popular", defende o autor de "Quinhentos Anos de Periferia" (1999).

    RECOMPOSIÇÃO

    Já Gilberto Maringoni, 57, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC, identifica nos EUA um movimento de recomposição com países da região. Nos últimos anos, houve um distanciamento. Os Estados Unidos foram acusados de patrocinar a tentativa de golpe contra Hugo Chávez em 2002. Dilma Rousseff protestou quando soube da ampla espionagem em terras brasileiras.

    "De um ano e meio para cá, a Casa Branca fez um giro em direção à América Latina, cujo feito mais luminoso é a aproximação com Cuba, mas cujo desenho maior é a tentativa de aproximação com o Brasil", diz.

    Fabio Braga - 25 ago. 2014/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL - 25.08.2014: Sete candidatos que disputam a eleição ao governo de São Paulo participam hoje do debate promovido por Folha, UOL, SBT e Jovem Pan. Na foto o candidato ao Governo de Sao Paulo Maringoni (PSOL). ( Foto: Fabio Braga/Folhapress, PODER)
    Gilberto Maringoni, que foi candidato do Psol nas eleições de 2014, durante debate em São Paulo

    "Não digo que a essência da hegemonia imperial norte-americana mudou, mas sua forma mudou. Agem com cautela. Mas não depende só da vontade", ressalta. É preciso ver como ficará o crescimento da China, aspecto essencial na exportação e nos investimentos da região, com óbvios reflexos na política externa.

    QUEDA DAS COMMODITIES

    Maringoni e Pinheiro Guimarães concordam que a queda abrupta nas cotações das commodities também ajuda a explicar a situação no continente.

    "Vivemos um quadro geral na América Latina que aponta para o fim de um ciclo político, cujos exemplos mais evidentes são as derrotas na Argentina e na Venezuela e a situação de extrema debilidade do governo Dilma. Um ciclo bancado pelo superciclo das commodities, que se esgotou", afirma Maringoni.

    "Mas não podemos ser economicistas e dizer que com o fim do ciclo das commodities tudo se acaba. Os países têm características distintas", pondera. No caso da Venezuela, o baque veio com a queda livre do preço do petróleo. O produto, cuja cotação está hoje menos da metade do que há um ano, é responsável pelo grosso da arrecadação estatal.

    Lá, enfatiza ele, a arrecadação fiscal é baixíssima, em torno de 10% do PIB. Para efeito de comparação, no Brasil, a carga tributária está na faixa dos 35% do PIB. Além disso, os ciclos do petróleo provocam conhecidos e contínuos desajustes, já apontados por Celso Furtado no seu clássico "Ensaios Sobre a Venezuela" (2008), fruto de observações em 1957 e 1974.

    "Há grande ingresso de petrodólares, valorização da moeda, doença holandesa. Para produzir internamente, tudo fica caro e o mercado é diminuto", diz Maringoni, autor de "A Venezuela Que se Inventa" (2004) e candidato do Psol ao governo de São Paulo em 2014.

    "Embora o governo venezuelano tenha feito uma constituição mais democrática, abrindo para a participação da população pobre, tenha investido mais na pauta social e na infraestrutura, o país continuou exatamente com a mesma inserção internacional que tinha em 1940: exportador de petróleo e importador de bens industrializados", declara.

    A Venezuela perdeu chance de diversificar sua economia quando o petróleo estava nas alturas? "Sim, mas condições objetivas dificultam isso. Na alta, foi muito barato importar carros, por exemplo. Para mudar esse quadro, é preciso colocar o Estado para sustentar a construção de uma indústria, mesmo que ela de prejuízo por longos anos, fazer integração regional com cadeias produtivas. É o problema de ser um país periférico pequeno", diz ele.

    NOVO REVÉS PARA MADURO

    Maringoni acha provável um novo revés para Nicolás Maduro. "Se o governo não fizer uma reviravolta grande, o que é difícil, é possível que venha a ser derrotado num eventual referendo em meados do ano, o que implica novas eleições, com grandes chances para a oposição", afirma.

    Carlos Garcia - 3 dez. 2015/Reuters
    Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de evento de campanha em Caracas em dezembro
    Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de evento de campanha em Caracas em dezembro

    Uma eventual vitória oposicionista teria limites: "Não tem muito o que a oposição possa fazer. Se assumir o poder daqui a algum tempo, vai se defrontar com esses problemas estruturais. A direita já governou o pais e já o mergulhou em problemas semelhantes, decorrentes da queda do preço do petróleo, doença holandesa, dificuldade extrema de realizar uma industrialização", defende.

    Apesar da profunda derrota eleitoral, o chavismo não morreu, opina Maringoni:

    "O governo Maduro continua. As marcas de Chávez são muito fortes. A pauta social foi colocada no centro da agenda nacional e isso permanece".

    ASCENSÃO DA DIREITA E LIÇÕES

    E quanto à ascensão de movimentos de direita na América do Sul? "Nenhum deles terá coragem de dizer que é contra os programas sociais, não vão ousar dizer que são contra as maiorias. Um partido que assuma claramente a defesa dos benefícios para os mais ricos não terá sucesso. Aqueles governos que vierem a subir e revogarem esses programas sociais terão uma oposição popular muito grande", declara Pinheiro Guimarães.

    E qual o aprendizado que a esquerda pode ter dos reveses no continente, a única região do mundo que, a partir dos anos 2000, colecionou governos classificados como de centro-esquerda, reformistas ou voltados para o social?

    "Fica a lição de que é necessário analisar muito a necessidade de realizar mudanças estruturais. Não adianta dizer que tem que mudar a economia", opina Maringoni.

    Já Pinheiro Guimarães considera prematuro decretar o fim de um ciclo político. "Os reveses são poucos. Na Argentina, o peronismo continua com maioria no Senado, por exemplo. Vários países permanecem [com governos mais à esquerda], como Equador, Bolívia, Uruguai, Chile. É preciso saber também o que acontecerá com a economia mundial. Se houver recuperação nas cotações das commodities, a situação será outra".

    Não há espaço para pessimismo? Responde o embaixador: "O povo é mais forte do que as minorias e vencerá no final. Se não fosse assim, a escravidão ainda existiria".

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024