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    Órfãos do ebola reconstroem suas vidas na Libéria

    KIERAN GUILBERT
    DA REUTERS, EM MONTSERRADO (LIBÉRIA)

    15/01/2016 07h00

    Meama tem 12 anos e quase não afasta os olhos do chão enquanto conta como viveu sozinha e dependeu de comida dada por vizinhos para sobreviver depois que sua mãe morreu de ebola, vítima da maior epidemia do vírus mortal que o mundo já conheceu.

    Sentada diante de sua nova casa, em West Point, a maior favela da capital liberiana, Monróvia, Meama abre um sorriso breve quando sua mãe adotiva a abraça com força.

    "Fui visitar minha irmã e vi esta pobre menina, sem-teto e sozinha, chorando sem parar", diz Kulah Borbor, que já tinha sete filhos antes de adotar Meama.

    "Eu a chamei para viver comigo porque ela parecia tão triste, vagando por aí sem ninguém para cuidar dela."

    Daniel Berehulak - 18.dez.2014/The New York Times
    Órfãos do ebola em Serra Leoa, um dos países da África mais afetados pela epidemia da doença
    Órfãos do ebola em Serra Leoa, um dos países da África mais afetados pela epidemia da doença

    Crianças riem a caminho da escola, correndo pelas vielas estreitas da favela, mas a história de Meama lembra o sofrimento cruel enfrentado por milhares de crianças que ficaram órfãs depois da epidemia que durante dois anos assolou três países da África ocidental.

    Cifras da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que o ebola deixou mais de 11,3 mil mortos desde 2013, incluindo cerca de 3.500 crianças, quase todos na Libéria, Guiné e Serra Leoa.

    A epidemia foi dada oficialmente por encerrada na quinta-feira, quando a Libéria foi declarada livre do ebola pela terceira vez, sem novos casos do vírus mortal em 42 dias. A Guiné foi declarada livre do vírus no mês passado, e Serra Leoa, em novembro.

    No entanto, embora a epidemia possa ter acabado, milhares de pessoas agora enfrentam o desafio de ter que reconstruir suas vidas. As autoridades e organizações beneficentes estão trabalhando para ajudar as vítimas menores.

    Editoria de arte/Folhapress

    Cerca de 8.000 crianças na Libéria perderam mãe, pai ou ambos os pais para o vírus hemorrágico, como mostram dados do governo. Com isso, ficaram vulneráveis a abusos, exploração e violência. Algumas foram forçadas a trabalhar em falsos orfanatos ou foram repudiadas, por medo da doença.

    Borbor admite ter sentido medo pouco depois de sua filha adotiva vir viver em sua casa.

    "Ela começou a se sentir mal e a tossir. Pensei que ela estivesse com o ebola. Fiquei apavorada!"

    FORÇADOS A TRABALHAR

    Mas o estigma e o medo estão perdendo força no país africano, e o governo está formando parcerias para assegurar que os órfãos sejam assistidos por parentes ou famílias adotivas.

    Muitos orfanatos inescrupulosos e abusivos surgiram repentinamente durante a epidemia. Mas uma campanha está em curso para fechar essas instituições.

    "Nossa prioridade para os órfãos é sempre que fiquem sob os cuidados da família. Orfanatos regulamentados e bem administrados constituem o último recurso", disse Patricia Togba, do Ministério do Gênero, Crianças e Proteção Social.

    Num vilarejo isolado do condado de Montserrado, longe do amontoado de barracos coloridos de West Point, Varmah Massaquoa, 50 anos, enfrenta dificuldades para cuidar de seus quatro netos desde que o ebola matou a mãe deles.

    Os irmãos ficam sentados em silêncio enquanto Massaquoa fala do dia em que funcionários vieram remover o corpo para que fosse enterrado, contando que as crianças, histéricas e chorando, tiveram que ser impedidas à força de subir sobre o caminhão, ao lado do corpo de sua mãe.

    "Eu só sinto trauma. As crianças choram todas as noites e eu não consigo dormir. Mas pelo menos elas têm a mim –senão, quem cuidaria delas?", diz Massaquoa, enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto de suas duas netas.

    Na África ocidental, os órfãos tradicionalmente são conservados na família mais extensa, mas, depois que a guerra civil na Libéria chegou ao fim, em 2003, após 14 anos, mais de cem orfanatos foram abertos.

    A maioria dessas instituições era de baixo nível, administrada por proprietários que forçavam as crianças a trabalhar, segundo a organização humanitária Save the Children, que em 2013 ajudou o governo a traçar uma política de avaliação e monitoramento de orfanatos, incluindo o fechamento dos que estivessem explorando as crianças.

    "A regulamentação é fraca na Libéria em todos os setores. Assim, mesmo um orfanato aberto por um indivíduo bem-intencionado poderia rapidamente virar um lugar sem higiene, onde se praticavam abusos, sem funcionários treinados e sem diretrizes claras", disse Edward Abbey, diretor da Save the Children na Libéria.

    A epidemia de ebola suspendeu essa política, e durante esse período surgiram muitos orfanatos novos, mas uma repressão renovada no ano passado levou ao fechamento de várias instituições, algumas das quais estavam usando as crianças para criar porcos e fabricar tijolos.

    "Houve até comunidades que nos procuraram para nos dizer que pessoas tinham aberto orfanatos que pareciam suspeitos", disse Togba. "Todo mundo sabe da importância de uma criança receber cuidados de uma família."

    LIVRE, FINALMENTE

    No auge da epidemia, que atingiu a Libéria com força especial, fazendo cerca de 4.800 mortos, o país de 4,3 milhões de habitantes em um primeiro momento ficou paralisado diante do grande número de crianças deixadas órfãs, segundo Togba.

    Três abrigos temporários recebiam os órfãos que não tinham familiares que pudessem acolhê-los, enquanto eram feitos esforços para rastrear parentes e procurar potenciais pais adotivos.

    "Num primeiro momento, os abrigos estavam superlotados", contou Togba. "Eu me perguntava: 'Como vamos fazer para achar lares para todas essas crianças?'."

    Mas hoje, quase todos os órfãos do ebola identificados pelo governo estão vivendo com familiares ou famílias adotivas, em lugares que vão de vilarejos distantes na zona rural às agitadas favelas de Monróvia.

    Alguns órfãos ainda enfrentam resquícios de estigma: são chamados de "crianças do ebola" e rejeitados ou satirizados por outras crianças. Mas a maioria se adaptou em suas novas famílias, comunidades e escolas.

    Correndo para colocar suas coisas na mala escolar na casa de sua tia no vilarejo de Montserrado, a 60 quilômetros a noroeste da capital, Ernest, 16 anos, sonha em tornar-se médico. É o caso de muitas crianças que ficaram órfãs devido ao ebola.

    "Eu cuidei de minha mãe quando ela teve ebola. Ficava apavorado quando ela vomitava no meu colo. Eu tinha medo de pegar a doença. Mas agora estou me esforçando na escola e pensando no futuro", ele disse.

    Em toda a Libéria, hoje há cerca de 120 assistentes sociais –comparados com apenas 12 antes da epidemia– que monitoram o bem-estar dos órfãos do ebola e acompanham os cuidados que eles recebem de suas famílias adotivas.

    A epidemia foi acompanhada por um aumento na violência sexual contra meninas e na violência contra crianças, dizem especialistas, deixando as crianças órfãs especialmente vulneráveis a abusos, segundo Sheldon Yett, diretor da Unicef (Organização das Nações Unidas para a Infância) no país.

    "Os assistentes sociais exercem um papel crucial em garantir que as pessoas protejam e priorizem as crianças e que as adotem pelos motivos justos, não apenas de olho no ganho financeiro", disse Yett.

    Os parentes e pais adotivos que acolheram órfãos do ebola receberam um pagamento único de US$ 150 por criança. De acordo com Togba, muitos usaram o dinheiro para abrir negócios e construir casas.

    Enquanto pendura suas roupas para secar sob o sol forte do meio-dia em sua casa em West Point, Martina Wilson aguarda sua filha adotiva voltar da escola para almoçar.

    Wilson abre um sorriso grande quando Drolrne vira a esquina correndo e corre em sua direção, gritando "mamãe, mamãe" com os braços abertos.

    "Ela estava triste quando chegou, depois de o ebola levar seu pai, mas agora está feliz. E, o que é mais importante, ela está livre."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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