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    Cidade na Dinamarca usa almôndegas suínas para afastar muçulmanos

    DO "NEW YORK TIMES", EM LONDRES

    21/01/2016 16h01

    Almôndegas suínas e outros pratos à base de carne de porco são a nova fronteira na guerra cultural da Europa.

    Diante da crescente onda de imigrantes e refugiados vindos sobretudo de países muçulmanos, a iguaria entrou no noticiário após uma cidade dinamarquesa tornar obrigatório que creches e pré-escolas públicas incluam esse tipo de carne na merenda.

    O consumo de carne de porco, considerado um animal impuro, é proibido pelo islã assim como pelo judaísmo.

    Reproduçã/Wikipedia/Randers
    Prefeitura de Randers, na região central da Dinamarca, que aprovou obrigatoriedade de alimentos com porcoNecz0r - Own workThe old Town Hall in Randers by the pedestrian area in town.
    Prefeitura de Randers, no centro da Dinamarca, que aprovou obrigatoriedade de alimentos com porco

    Para os defensores da proposta, aprovada na segunda-feira (18) pelo Conselho de Randers, uma antiga cidade industrial de 60 mil habitantes no centro da Dinamarca, servir alimentos da culinária tradicional dinamarquesa, como carne de porco, é essencial para ajudar a preservar a identidade nacional.

    Mas os críticos da exigência, incluindo integrantes da comunidade muçulmana e defensores da imigração, disseram que isso cria um problema concreto com o propósito de estigmatizar os muçulmanos e polarizar a sociedade. Afinal, nunca houve uma tentativa de proibir a carne em refeitórios de órgãos públicos de Randers, afirmam.

    "A cultura gastronômica dinamarquesa" deve ser "uma parte central da oferta —incluindo servir carne de porco em iguais proporções à de outros alimentos", afirma a proposta, acrescentando que a intenção não era forçar ninguém a comer algo que "vai contra sua crença ou religião".

    A Dinamarca, conhecida como um Estado de bem-estar social generoso e por lugares como o liberal bairro de Christiania, em Copenhague, vem reprimindo a imigração nos últimos meses enquanto países do continente estudam como lidar com os solicitantes de asilo.

    Martin Henriksen, porta-voz do Partido Popular Dinamarquês, grupo político anti-imigrantes de extrema direita que apoiou a medida, considerou a norma "necessária" para manter a cultura dinamarquesa "em face da potenciais ameaças do islamismo".

    "É inaceitável proibir a cultura alimentar dinamarquesa, incluindo pratos com carne de porco, nas instituições infantis da Dinamarca. O que mais vai acontecer?!", escreveu na Henriqsen na pagina do partido em uma rede social.

    "O Partido Popular Dinamarquês está trabalhando em âmbito nacional e local pela cultura dinamarquesa, incluindo a cultura gastronômica, e isso significa que também estamos lutando contra as normas islâmicas e considerações equivocadas que impõem o que as crianças dinamarquesas devem comer."

    A lei sobre a carne de porco chega em um momento em que a Dinamarca está prestes a aprovar uma normativa que forçaria refugiados a entregar objetos pessoais de valor, incluindo joias, para ajudar a pagar sua acolhida, um passo que enfureceu grupos de direitos humanos e recebeu críticas da Organização das Nações Unidas.

    O primeiro-ministro, Lars Rasmussen, também advertiu que o tratado da ONU de 1951 sobre os direitos dos refugiados pode precisar de uma revisão. E, neste mês, depois que a Suécia introduziu controles de identidade a viajantes que vêm da Dinamarca, os dinamarqueses fizeram o mesmo em sua fronteira com a Alemanha.

    FEIJOADA LOCAL

    A agricultura é parte da identidade nacional dinamarquesa, e a carne de porco ali é tão comum como a feijoada no Brasil. Em 2014, carne de porco crocante com molho de salsinha foi considerado o prato nacional da Dinamarca. O país também está entre os maiores exportadores de carne de porco do mundo, de acordo com o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento dinamarquês.

    Ayse Dudu Tepe, arqueóloga e jornalista nascida na Dinamarca de pais turcos, observou, com ironia, que ela conseguia entender quem agia em nome dos suínos.

    "Em um país com mais porcos do que seres humanos faz todo o sentido ter um partido político que fala em nome dos porcos", escreveu em sua página em uma rede social.

    Charlotte Molbaek, integrante do Partido Popular Socialista no Conselho Municipal de Randers, disse que a proposta teve motivação política. O Partido Popular Dinamarquês se tornou uma potente força política, em parte por se posicionar contra a imigração e por se mostrar como protetor dos valores tradicionais dinamarqueses.

    "Do que as crianças precisam? Elas precisam de carne de porco? A verdade é que não. Mas o Partido Popular Dinamarquês, sim", disse ela, segundo o jornal "Politiken", durante um debate sobre a medida. "As crianças precisam de adultos."

    A Dinamarca não está sozinha em mirar a cultura, incluindo a culinária, como um baluarte para proteger a identidade nacional.

    Na França, um país obcecado pela comida —onde exortações pela manutenção dos alardeados valores liberais seculares do país se tornaram mais do que urgentes depois de dois ataques terroristas distintos praticados por extremistas islâmicos em 2015—, a carne de porco se tornou um tema às vezes passional em debates sobre integração.

    Várias cidades administradas por prefeitos de direita tentaram remover opções sem carne de porco das cantinas escolares em um esforço declarado de preservar a identidade francesa, mesmo quando integrantes das comunidades muçulmanas e judaicas protestaram que tais políticas corriam o risco de alienar minorias.

    Em Chalon-sur-Saône, na região francesa da Borgonha, alunos do ensino fundamental que não ingerem carne de porco têm de se contentar com vegetais, depois que o Conselho Municipal votou em setembro a interrupção da oferta de substitutos como peixe em seus cardápios, nos dias em que a carne de porco é servida.

    ESCRUTÍNIO

    Por causa de seu papel essencial de fomentar a integração, as escolas da Europa estão cada vez mais sob escrutínio. Na quarta-feira (20), surgiu a notícia no Reino Unido de que um garoto muçulmano de 10 anos havia sido interrogado pela polícia em dezembro depois de haver cometido uma falha de ortografia e escrever erroneamente que vive em uma "casa terrorista" ("terrorist house") durante uma aula de inglês.

    O menino, de Lancashire, no noroeste da Inglaterra, quis escrever "casa geminada" ("terraced house"), de acordo com a BBC.

    Mas na Dinamarca foi a comida nas escolas que desencadeou os recentes debates.

    Fatma Cetinkaya, membro do Partido Social-Democrata no Conselho Municipal de Randers, considerou a nova medida "incompreensível".

    "Randers sempre esteve na vanguarda em questões de integração", ela disse, de acordo com o "Politiken". "Não temos problemas de criminalidade e um monte de outras coisas, então é incompreensível que a carne de porco tenha se tornado um problema. É uma vergonha."

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