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    Minha História

    No Brasil, Nobel da Paz relata luta contra escravidão e trabalho infantil

    EM DEPOIMENTO A
    LUÍSA PESSOA
    DE SÃO PAULO

    29/01/2016 02h00

    Zanone Fraissat/Folhapress
    Kailash Satyarthi, ganhador do prêmio Nobel da Paz, veio a São Paulo para participar de campanha
    Kailash Satyarthi, ganhador do prêmio Nobel da Paz, veio a São Paulo para participar de campanha

    Em 2014, o ativista indiano Kailash Satyarthi, 62, foi premiado com o Nobel da Paz. Desde 1980, ele combate o trabalho escravo e infantil na Índia e em outros países.

    Estima-se que sua organização, a Bachpan Bachao Andolan [Movimento Salve a Infância], já tenha resgatado mais de 83 mil crianças.

    Na quinta (28), Kailash veio ao Brasil para participar do lançamento da #SomosLivres, campanha nacional de prevenção e informação sobre a escravidão contemporânea.

    *

    Era meu primeiro dia de escola, tinha cinco anos. Em casa, me diziam que as crianças deveriam ir estudar nessa idade.

    Quando estava entrando no prédio, vi um menino, de minha idade, olhando para nós. Ele era engraxate e estava com seu pai, também engraxate. Eu não entendi.

    Por que o menino estava ali, não conosco? Perguntei a meu professor, que respondeu que aquilo era comum, que crianças pobres trabalhavam. "Pense em fazer novos amigos, em ir bem na escola, não nisso", me disse.

    Eu fiz a mesma pergunta para o diretor da escola e para a minha família, mas todos tentaram me convencer de que aquilo era normal.

    Todos os dias, eu via aquele menino e seu pai perto de minha escola, trabalhando. Aos poucos, criei coragem para falar com eles. Perguntei ao pai: "Por que você não leva seu filho à escola?". Ele disse: "Nunca me perguntaram isso. Meu pai, eu e agora meu filho trabalhamos desde crianças, nós nascemos para trabalhar".

    Rupak De Chowdhuri - 10 out. 2006/Reuters
    Garota trabalha quebrando pedras em Silliguri, na Índia, em fotografia de 2006
    Garota trabalha quebrando pedras em Silliguri, na Índia, em fotografia de 2006

    Sou o caçula da família, e todos tinham muita expectativa sobre meu futuro. Queriam que eu fizesse engenharia, e fiz, mas não tinha interesse naquela carreira. Mesmo na minha juventude eu já participava de campanhas para as crianças da minha região poderem estudar.

    Naquela época, ainda não estava claro para mim como eu poderia ajudar os outros. Eu não queria fazer trabalhos de caridade convencionais —doando dinheiro, abrindo orfanatos ou escolas. Acho que isso satisfaz mais o ego do doador, não é impulsionado pela ideia de igualdade, pois há sempre a mão que dá e a mão que recebe.

    Por um ano e meio, dei aulas na faculdade e trabalhei como engenheiro elétrico. Aos poucos, decidi que deveria seguir meu coração e abandonar aquela carreira. Conversei com a minha mulher, que concordou.

    JORNALISMO

    Nos mudamos para Déli. Era 1980 e eu tinha 26 anos. Fomos viver em uma sala, sem janelas, de dois metros e meio por três metros, nós e nosso filho, ainda bebê.

    Criamos uma revista experimental, destinada aos setores que não encontravam espaço na imprensa tradicional. Naquela época, ainda não existia jornalismo voltado aos direitos humanos.

    Um amigo me cedeu um espaço, na varanda de seu escritório, onde eu poderia trabalhar. Batizamos a revista, em hindi, de "Sangharsh Jaari Rahega" [A luta deve continuar]. Após cada artigo, cada caso relatado, eu fazia um apelo aos leitores para que eles se mobilizassem, que escrevessem às autoridades, pressionassem por mudanças. Chegamos a ter 2.000 assinantes.

    Minha família ficou triste com a minha decisão. A preocupação deles era com meu futuro, pois, quando eu desisti do meu emprego de engenheiro, fiquei sem dinheiro. Além disso, eu estava tratando de temas que ainda não eram reconhecidos pela sociedade: trabalho infantil, trabalho escravo —muitas pessoas não viam aquilo como um problema.

    Ainda hoje, muitos não reconhecem que as crianças têm direito ao respeito e à dignidade. Muitas vezes, a estupidez e "ser criança" são vistos como sinônimos.

    PRIMEIRO RESGATE

    Um dia, em 1981, um pai desesperado bateu em minha porta, no "meu escritório". Sua filha estava prestes a ser vendida para um bordel. Ele chamava Vasal Kahn, era muçulmano. Há 17 anos, tinha sido sequestrado com sua mulher e outras pessoas de seu vilarejo e enviado para trabalhar em uma fábrica de tijolos.

    Sua filha, que tinha 15 anos, havia nascido na fábrica e também era escravizada ali. Mas agora estava sendo "negociada" pelo dono da fábrica.

    Aquele pai conseguiu escapar de madrugada, se escondendo na boleia de um caminhão que levava os tijolos da fábrica. Ele chegou a Nova Déli e, nas ruas, começou a chorar e pedir por ajuda.

    Sanjay Kanojia/AFP
    Criança em fábrica de tijolos em Allahabad, na Índia, em fotografia de 2013
    Criança em fábrica de tijolos em Allahabad, na Índia, em fotografia de 2013

    De alguma forma, ele conheceu uma pessoa que era assinante da minha revista, que lhe disse para me procurar, que eu contaria sua história. E com isso ele conseguiria ajuda da polícia.

    Enquanto eu escrevia a história, percebi que, se eu fosse o pai ou irmão da menina, eu não iria só escrever. Eu tinha que fazer algo a mais. Decidimos então tentar uma operação de resgate. Eu e minha mulher abrigamos Vasal Kahn em nossa casa, vendemos algumas de nossas posses para arrecadar dinheiro e alugar um carro para irmos à fábrica, que ficava a centenas de quilômetros de Déli.

    Fui com alguns amigos tentar o resgate —não só da menina, mas de todos que eram escravizados ali. No entanto, fomos expulsos de forma violenta do local.

    Conversei com amigos advogados, que nos aconselharam a acionar a Justiça. Finalmente, conseguimos resgatar 36 pessoas daquela fábrica de tijolos.

    Para mim, foi um momento de revelação. A alegria que vi no rosto daquelas crianças não pode ser explicada. Era a primeira vez que elas saíam às ruas, viam novas pessoas, carros, o mundo.

    Alguns dias depois, recebi uma ligação anônima, falando que eu não precisava viajar para fazer aquele trabalho. Na própria cidade de Nova Déli, a apenas 20 quilômetros de minha casa, havia uma mina onde também pessoas eram escravizadas, em condições ainda piores que na fábrica de tijolos. Resgatamos 153 pessoas de lá.

    Naquele mesmo ano, em 1981, que criamos a Bachpan Bachao Andolan [Movimento Salve a Infância].

    OPERAÇÕES SECRETAS

    Participei de centenas de operações de resgate desde então. Boa parte do trabalho fazemos em segredo, recolhendo informações. Depois vamos ao local com as autoridades e libertamos as pessoas.

    Não podemos dar à polícia o endereço exato de onde vamos com antecedência ou detalhes, pois é comum que, por propina, os policiais avisem os senhores de escravos.

    1º mai. 2002 - AFP
    Criança trabalha em fábrica de tijolo em Chandigarh, na Índia, em fotografia de 2002
    Criança trabalha em fábrica de tijolo em Chandigarh, na Índia, em fotografia de 2002

    Após os resgates, as pessoas são encaminhadas a um programa de reabilitação. As crianças são alfabetizadas e os adultos e jovens (a partir dos 14 anos) recebem treinamento profissional, para que possam ter um trabalho digno. Elas também passam a receber uma compensação financeira do governo.

    Nosso projeto não é de caridade, criamos lideranças. Muitas das crianças resgatadas voltam a suas comunidades, viram líderes locais e evitam que sua história se repita.

    PIONEIRISMO

    O que fizemos foi a primeira iniciativa não somente na Índia, mas no mundo, contra o trabalho infantil e a escravidão contemporânea. Muita gente achava que isso não existia, que era passado.

    Nem a Unicef (agência da ONU) nem a OIT (Organização Internacional do Trabalho) lidavam com o problema quando começamos. O Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil só foi implementado em 1993. A Convenção sobre os Direitos da Criança havia sido adotada poucos anos antes, em 1989.

    Meu primeiro contato com o Brasil aconteceu me 1996, quando conheci um representante da Fundação Abrinq em um evento na Holanda, o Lelio Bentes [hoje ministro do Tribunal Superior do Trabalho]. Eu acho que o Brasil fez muito progresso nos últimos vinte anos. As leis brasileiras são boas. O projeto Bolsa Escola, criado por Cristovam Buarque, foi muito importante, assim, como o Bolsa Família.

    Muitos não acham que o trabalho infantil seja um problema, ignoram. Mesmo nos jornais, não lemos muito sobre isso. Ou então as pessoas sabem do problema, mas acham que ele é muito complicado, que nunca conseguiremos resolvê-lo. Por isso se omitem. Ou seja, é uma combinação de falta de conhecimento, de empatia e de pessimismo.

    PRÊMIO NOBEL

    Eu soube que havia ganhado o Nobel em meu escritório. Eu estava no computador, pesquisando a passagem mais barata que podia encontrar para ir para a Alemanha, onde eu participaria de um evento. Então um jornalista indiano conhecido me ligou, e ele estava tão emocionado que não conseguia terminar sua frase: "Senhor Kailash, senhor Kailash...o Nobel, o Nobel!".

    A princípio pensei que ele queria algum comentário sobre o prêmio, e depois caiu a ficha de que eu havia sido premiado. O escritório ficou em festa, as pessoas me abraçavam e comemoravam.

    Com o prêmio, o trabalho infantil e a escravidão voltaram a ganhar atenção das autoridades e da imprensa. O Nobel ajudou a criar conscientização e também deu mais incentivo aos ativistas.

    Vegard Wivestad/AFP
    Kailash Satyarthi e Malala Yousafzai durante premiação do Nobel da Paz, em 2014
    Kailash Satyarthi e Malala Yousafzai durante premiação do Nobel da Paz, em 2014

    O principal do prêmio, para mim, foi aproveitar a oportunidade que ele trouxe para divulgar a causa das crianças. Passei a ser ouvido por líderes mundiais, como Barack Obama (presidente dos EUA), François Hollande (da França), Ban Ki-Moon (líder das Nações Unidas).

    Em setembro de 2015, por exemplo, conseguimos incluir entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que substituiu os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a erradicação do trabalho infantil e a proteção das crianças. Isso significa que agora esse assunto ganhará prioridade, inclusive orçamentária.

    O próximo desafio é fazer com que esses compromissos firmados internacionalmente —que por enquanto são promessas— se transformem em realidade.

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