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    Espírito do Occupy Wall Street turbina ascensão de Sanders

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    14/02/2016 02h00

    A brutal concentração de renda e o crescimento exponencial da pobreza corroeram a mística do sonho americano. O 1% mais rico drena a riqueza dos 99%, beneficiando cada vez mais grandes corporações, enquanto a maioria percebe que viverá em piores condições do que as das gerações passadas.

    A indignação e o berro por mudanças de fundo tomaram uma praça perto de Wall Street —símbolo do modelo concentrador de poder e de criação de desigualdades abissais— em setembro de 2011. Dois meses depois, os manifestantes foram expulsos numa violenta operação policial.

    Jim Young - 19 jan. 2016/Reuters
    Camisetas com o nome de Bernie Sanders à venda durante evento de campanha em Iowa
    Camisetas com o nome de Bernie Sanders à venda durante evento de campanha em Iowa

    O parque Zuccotti ficou vazio, mas as palavras de ordem dos manifestantes voltaram a ecoar, agora na voz de Bernie Sanders, pré-candidato à Casa Branca pelos democratas. Muitos dos organizadores do protesto de 2011 estão trabalhando neste momento com o senador de Vermont, atuando em redes sociais, estruturando sua campanha de arrecadação, produzindo todo o tipo de material de propaganda para arregimentar colaboradores e eleitores.

    Quem conta os bastidores da ligação entre o Occupy e o candidato a candidato é o jornalista Will Bunch no recém-lançado "The Bern Identity". Ganhador do Pulitzer, principal prêmio de jornalismo do mundo, o autor relata que a senadora democrata Elizabeth Warren foi a primeira a ser procurada pelos manifestantes de Nova York que queriam continuar a batalha na esfera institucional.

    Warren não aceitou concorrer, e a campanha desenhada para ela foi abraçada por Sanders —já um histórico paladino da luta contra desigualdades sociais e identificado com as propostas do Occupy. Paralelamente, setores da esquerda do partido Democrata também se mobilizaram para convencer o senador a entrar na disputa.

    Além do "espírito do Occupy", a campanha de Sanders tenta resgatar muitas outras ideias. Estão lá marcas dos protestos por igualdade racial e contra a guerra nos anos 1960, princípios do New Deal, de Franklin Delano Roosevelt, que tiraram o país da recessão nos anos 1930, e até vestígios do jeito escandinavo de ser, modelo que busca conter algumas ferocidades capitalistas.

    PRIMEIRA VEZ EM WASHINGTON

    Foi de ônibus, em agosto de 1963, que Sanders chegou pela primeira vez a Washington, acompanhando a famosa marcha que culminou com o célebre discurso de Martin Luther King ("I Have a Dream"), lembra Bunch. Naquela época, o hoje senador já militava em grupos por direitos civis e contra a segregação racial.

    Na Universidade de Chicago, a meca do neoliberalismo, ele participou do movimento estudantil enquanto fazia o curso de ciência política. No campus, na noite de 7 de outubro de 1960, assistiu ao segundo debate entre Kennedy-Nixon. Ficou indignado quando o democrata atacou Cuba. Entusiasta da revolução de Fidel Castro, resolveu se afastar dos democratas. Tinha 19 anos e começou a trilhar um caminho independente.

    Meses antes, sua mãe, Dorothy Glassberg, morria de câncer aos 46 anos no apartamento alugado pela família na rua 26 East, no Brooklyn. Nova-iorquina, ela se casara com Eli, imigrante judeu polonês, que chegara aos EUA em 1921 e que teve parte da família assassinada pelos nazistas na Segunda Guerra.

    Bernard Sanders nasceu em 8 de setembro de 1941, três meses antes do ataque a Pearl Harbor. Roosevelt tirara o país da depressão, a guerra estava chegando aos EUA e os próximos anos de crescimento e ascensão social criariam a maior classe média do planeta.

    "Muito cedo aprendi que a insegurança econômica e a falta de dinheiro podem ter um papel essencial em determinar com se vive a vida. Nunca esqueci dessa lição", escreveu ele em sua autobiografia "Outsider in the House" (1998).

    Com a família, se emocionou ao ver na Broadway a encenação da peça "A Morte do Caixeiro Viajante", de Henry Miller. O pai, também um caixeiro viajante, chorou muito e a experiência "enorme impacto" para os Sanders, afirma "The Bern Identity".

    INFLUÊNCIAS

    Investimentos estatais, mais impostos para os ricos, controle das finanças, aumento de salários e força para os sindicatos forjaram a época do New Deal, que esmagou desigualdades de renda. Não foi à toa que, no debate com Hillary Clinton, na noite da última quinta-feira (11), Sanders escolheu Roosevelt como personagem que o influenciou.

    São inspiradas nas obras daquele presidente muitas das medidas que Sanders defende em sua plataforma. Basta checar a relação de propostas e trechos de discursos reunidos por Jonathan Tasini em "The Essential Bernie Sanders and His Vision for América" (2015). Propondo elevação nos salários, criação de empregos, mais impostos para ricos, ele de certa forma recupera as bases da ascensão da classe média na sua juventude.

    Chegar à Universidade de Chicago foi um passo enorme para ele, mas fazia parte do horizonte daquela geração que vivia o chamado Sonho Americano. Perto de onde ele morava no Brooklyn, talentos como Woody Allen e Carole King emergiram no mesmo processo, recorda Will Bunch. Na trilha sonora de seus comícios vigora hoje Neil Young.

    Em seu livro, o jornalista relata as caravanas de Sanders pelo interior do país no ano passado e as compara a turnês dos Rolling Stones. Conta como estudantes endividados e trabalhadores desempregados ou ganhando baixos salários passaram a participar da campanha. Ideias para ensino e saúde gratuitos mobilizam jovens e suas famílias.

    CRÍTICA AO SISTEMA

    A chamada rede de proteção escandinava —que nada tem de socialista— ganha destaque nos discursos e galvaniza atenções. Essa ênfase talvez faça eco com o sucesso da trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson. Para além do aspecto de romance policial, os livros trazem uma enorme crítica às corporações, ao "sistema".

    São pontos sempre enfatizados por Sanders. Na quinta (11), ele voltou a atacar os irmãos Koch, bilionários ultradireitistas do setor do petróleo retratados com crítica por Daniel Schulman em "Sons of Wichita" (2014).

    No mesmo debate, Sanders atacou violentamente Henry Kissinger e lembrou das vezes em que os EUA derrubaram governos pelas armas. Citou o célebre caso do iraniano Mohammed Mossadegh, que em 1951 nacionalizou o petróleo, provocando a ira das companhias estrangeiras.

    Sua visão independente e contrária às intervenções norte-americanas pelo mundo (votou contra a guerra no Iraque), já estava clara nos anos 1980, quando ele foi prefeito de Burlington (Vermont) durante quatro mandatos.

    Entusiasta da revolução sandinista, visitou a Nicarágua em 1985 para comemorar a derrubada da ditadura somozista. Seus apoiadores em Burlington eram chamados de "sanderistas", em alusão aos sandinistas, e pela cidade circulavam camisetas onde se lia: "The People Republic of Burlington". Na mesma época viajou também para a então URSS.

    Em "The Bern Identity", Bunch fala dos embates da gestão Sanders na prefeitura, as pressões empresariais e de setores da ultraesquerda. Sob protestos do maior incorporador da cidade, vetou um projeto imobiliário que modificaria a orla local.

    ARMAS

    À esquerda, enfrentou manifestação de um grupo pacifista que pretendia fechar a unidade de armamentos da General Eletric sediada na cidade. A ação era liderada por um amigo próximo, seu ex-companheiro no Liberty Union Party, onde ele militara nos anos 1970.

    Sanders não titubeou: mandou prender os ativistas. "Não vou tirar o emprego de 3.000 pessoas assalariadas e criar uma depressão", declarou a um repórter na época. Sua ligação com o setor de armas teve um novo capítulo quando recebeu, nos anos 1990, apoio da National Rifle Association, que queria barrar um candidato mais radicalmente contrário ao uso de armas.

    Estavam em questão os controles para venda e os tipos de armamentos permitidos. Em 1994, ele apoiou legislação para proibir certos tipos de armas para civis.

    Na sua trajetória, Sanders passou por altos e baixos. Foi destacado corredor de longa distância no Brooklyn e carpinteiro. Quando jovem, teve a eletricidade cortada tantas vezes que precisou fazer um "gato" com a fiação do vizinho. Sem dinheiro para o aluguel, foi despejado e passou a dormir no sofá da casa de um amigo.

    Seu primeiro casamento, com Deborah, desmoronou. Fruto do relacionamento com uma namorada, Susan, teve seu único filho biológico, Levi, nascido em 1969.

    Com sua nova mulher, Jane, uma participante de Woodstock, se instalou no interior de Vermont. Lá, refez sua vida e reapareceu para a política como Bernie. Enquanto muitos de seus companheiros se adaptavam aos novos tempos e iam mudando de ideias, ele persistiu.

    "Muitos da juventude daquela era ou saíram para viver em comunidades ou entraram nas drogas ou acabaram se vendendo para a escravidão da sociedade burguesa. Nenhum deles teve a teimosa persistência do melhor corredor de longa distância do Brooklyn, com a habilidade de continuar com passadas estáveis mesmo sem enxergar a linha de chegada", avalia Bunch.

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