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    ANÁLISE

    Síria é mera peça no jogo da Rússia pelo poder

    TONY BARBER
    DO "FINANCIAL TIMES"

    14/02/2016 02h00

    Os ataques aéreos da Rússia na Síria ameaçam virar a maré da guerra civil no país a favor do ditador Bashar al-Assad. No entanto, desde o início deste ano, o presidente Vladimir Putin faz outros movimentos, na Ucrânia e no resto da Europa, em busca de seus objetivos internacionais.

    Por trás disso, repousam três temas característicos dos 16 anos de Putin como líder do Kremlin.

    O primeiro é o desejo de recuperar o terreno estratégico que a Rússia perdeu para o Ocidente no início da era pós-Guerra Fria e, em particular, fazer com que os EUA tratem Moscou como uma grande potência sem a qual os problemas globais, incluindo o conflito sírio, não podem ser resolvidos.

    O segundo é a determinação de maximizar a influência russa sobre a Ucrânia e outras repúblicas que se tornaram independentes quando a União Soviética entrou em colapso em 1991.

    O último é usar uma política externa patriótica, com ênfase em estrangeiros malévolos, como uma maneira de mobilizar a opinião pública russa para apoiar Putin e consolidar seu governo em um momento em que o descontentamento social cresce por causa da deterioração das condições econômicas.

    O objetivo do ataque aéreo da Rússia em Aleppo é virar o resultado da guerra a favor de seus aliados do governo sírio e contra os rebeldes da oposição. Se Aleppo cair, Putin pode estar aberto a negociações de paz mais abrangentes do que o cessar-fogo parcial anunciado em Munique. Em tais negociações, a Rússia possuiria muitas das cartas mais fortes.

    No entanto, Putin dá a impressão de ter negócios pendentes na região —não tanto com a facção terrorista Estado Islâmico, a principal dor de cabeça dos governos ocidentais, mas com a Turquia. Certamente não foi por acaso que Putin alertou Ancara no início de dezembro que iria "se arrepender mais de uma vez" pelo abate de um avião de guerra russo em 24 de novembro perto da fronteira sírio-turca.

    Ao usar a força armada na Síria desde setembro, a Rússia deixou claro que se vê como uma potência regional de peso, como os EUA, no Oriente Médio.

    De forma discutível, o Kremlin tem um interesse mais forte a longo prazo em manter sua base naval na Síria do que em apoiar o presidente Bashar al-Assad. No entanto,

    Moscou estabeleceu que não vai mais deixar que os governos ocidentais acabem com qualquer ditador do qual não gostam, como fizeram com Muammar Gaddafi em 2011.

    UCRÂNIA

    Em relação à Ucrânia, a Rússia seguiu um caminho um pouco diferente.

    Sem alarde, Vladislav Surkov, um assessor próximo a Putin, manteve conversações em meados de janeiro com Victoria Nuland, subsecretária de Estado para assuntos europeus. Apenas pelo fato de haver acontecido, a reunião chamou a atenção.

    Para a Rússia, a revolução da Ucrânia de 2014 foi uma trama de inspiração dos Estados Unidos em que Nuland desempenhou papel central, ao incitar fanáticos ucranianos de extrema-direita a derrubar Viktor Yanukovych, o presidente pró-Moscou.

    Como os tempos mudam.

    Agora parece que o Kremlin prefere conduzir a diplomacia relacionada à Ucrânia com Nuland, porque ela é norte-americana, do que dentro do Quarteto da Normandia, que compreende França, Alemanha, Rússia e Ucrânia. Esse quarteto produziu o chamado Acordo Minsk II, em que se baseiam os esforços de paz, mas o entusiasmo de Moscou pelo modelo da Normandia aparentemente está diminuindo.

    Não está claro se as negociações Nuland-Surkov tiveram muito progresso. Mas contatos mais substantivos entre russos e norte-americanos sobre a Ucrânia não devem ser excluídos. Moscou aprecia o simbolismo de sentar-se como um igual, à mesa com Washington.

    UNIÃO EUROPEIA

    Por outro lado, o Kremlin considera que a União Europeia está em desordem, não por causa de uma crise de refugiados, pela qual, deve-se dizer, a campanha aérea da Rússia na Síria é parcialmente responsável.

    Nada ilustra melhor o desejo de Moscou de irritar a Alemanha do que as recentes mentiras inventadas pela televisão estatal russa sobre uma menina de 13 anos pertencente a uma família imigrante russa em Berlim.

    A história de que pessoas que pediam asilo tinham violentado a garota era uma invenção maliciosa e provocou protestos por parte do governo alemão.

    DIPLOMACIA E CONFLITO

    Se lidar com os norte-americanos a respeito da Ucrânia é uma nova característica da diplomacia russa, isso não significa que o Kremlin está pronto para abandonar seu apoio às entidades separatistas pró-Rússia no leste da Ucrânia. No entanto, vale a pena manter em mente que o medo de tal traição ronda constantemente as mentes de muitos separatistas de Donetsk e Lugansk.

    Um preço que, ao que parece, os russos nunca vão pagar, seja para garantir o fim das sanções ocidentais ou para outros propósitos, é o abandono da pretensão de exercer algum tipo de influência política permanente sobre a Ucrânia e outros países vizinhos.

    Essa exigência precede não apenas o putinismo, mas a era comunista entre 1917 e 1991. Ela está enraizada em uma determinação de não deixar ideias estrangeiras perigosas, tais como a monarquia constitucional ou a democracia liberal, contaminar a cultura política da Rússia e desestabilizar suas estruturas dominantes.

    Muito mais do que a Síria, a Ucrânia é para a Rússia não só uma questão de projeção de poder, mas de vida e morte nacional. Mesmo assim, parece que a Síria, e não a Ucrânia, vai dar a Putin um sucesso de política externa muito cobiçado.

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