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    Aliciadores do Estado Islâmico buscam brasileiros na Europa; Folha seguiu seus passos

    FELIPE DE OLIVEIRA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA EUROPA

    13/03/2016 02h00

    João (nome fictício) saiu do Brasil para estudar e expandir sua cultura pelo programa Ciência Sem Fronteiras. Pretendia voltar ao país ao fim do curso, mas o roteiro teve uma reviravolta. Em sua estada no exterior, sonhos, objetivos e crenças mudaram.

    A experiência de João, a julgar por milhares de supostas fichas de inscrição na milícia terrorista Estado Islâmico reveladas na quinta-feira (10) por uma TV britânica, está longe de ser única.

    AL-Furqan - 05.jul.2014/AFP
    O Estado Islâmico, de Abu Bakr al-Baghdadi (foto), organizou uma rede de recrutamento na Europa
    O Estado Islâmico, de Abu Bakr al-Baghdadi (foto), organizou uma rede de recrutamento na Europa

    Terroristas desta e de outras facções menos conhecidas, ou pessoas tentando se passar por eles, cobiçam para suas fileiras jovens de bom nível educacional, capazes de falar dois idiomas ou mais e de nacionalidades insuspeitas. Brasileiros, inclusive.

    Com João, o contato inicial veio durante uma temporada de estudos na Espanha. Foi sutil, um convite para participar de um grupo de estudos islâmicos. Com o passar do tempo, ele se converteu.

    A convivência se tornou mais intensa. Seus parceiros de crença, disse João à Folha, ofereciam tudo que ele não tinha na Europa, de atenção a dinheiro. Viraram sua família e seus melhores amigos.

    Após meses frequentando grupos de estudo, ele passou a ir a reuniões "um pouco mais radicais", cujas ideias iam além do lado pacífico do Alcorão, livro sagrado do islã. Em uma delas, disse João, ele foi apresentado a dois homens que disseram ser recrutadores do Estado Islâmico.

    O que é Estado Islâmico

    O INFILTRADO

    A cada semana surgem casos como os da sueca Marlin Nivarlain, 16, do belga filho de brasileira Brian de Mulder, 22, e de João. Todos tinham uma vida comum, até que abandonaram tudo para se unir ao Estado Islâmico (EI).

    Não há como explicar por que o terrorismo é atraente a alguém sem histórico de extremismo político ou religioso sem viver a experiência. Por isso, após meses de investigação, a reportagem da Folha passou a seguir os mesmos passos e tentar mapear o caminho dos recrutados.

    Com informações passadas por João e após meses de preparação, foi necessário criar uma identidade, outra história de vida, outras frustrações e, sobretudo, ressaltar as aptidões buscadas pelos supostos recrutadores: conhecimento de idiomas, fluência em tecnologia e atração pela filosofia islâmica radical.

    A idade em torno de 25 anos e a possibilidade de entrar sem maior restrição em vários países, inclusive nos EUA, é algo que o EI procura em recrutas, dizem analistas.

    O passo seguinte foi se aproximar de grupos de brasileiros e estrangeiros mostrando interesse no Alcorão. A conclusão, após meses acompanhando esses grupos, é que muitos de fato visam disseminar ensinamentos pacíficos do profeta Maomé.

    Uns poucos, porém, dedicam-se a atividades escusas. Com auxílio de João e identificando-se como um brasileiro de aspiração jihadista, foi possível chegar a um deles.

    O primeiro encontro com os supostos aliciadores foi marcado em Madri, cidade onde João tivera o primeiro contato com radicais.

    Ao todo, ocorreram encontros com a reportagem em seis países da Europa, sempre intermediados por João. Por segurança e receio de ambos os lados, toda comunicação com os homens ocorria por meio do estudante do Ciência sem Fronteiras.

    Estado Islâmico: califado midiático

    OS ALICIADORES

    Metódica, a dupla de supostos aliciadores evitava andar acompanhada. Nunca pegava o mesmo tipo de condução e jamais disse onde vivia.

    O primeiro ponto escolhido por eles foi uma lanchonete de uma rede de fast-food em uma das principais praças de Madri. Eram dois jovens de aparência comum, aparentemente alegres e sem sinal que remetesse ao radicalismo ou à religião, como barba. Além do inglês fluente, um deles falava espanhol e arriscava o português.

    Nos primeiros encontros, não houve uma palavra sobre Estado Islâmico. A dupla marcava em shoppings, restaurantes e pontos turísticos.

    Atentos, pareciam medir cada palavra e observavam todos os movimentos e reações à sua volta a ponto de causar desconforto e tensão.

    Aparentemente treinados para captar qualquer reação, faziam diversas perguntas sobre os relacionamentos no Brasil, a área de estudos (tecnologia) e o contato inicial com o islã. Segundo João, era um teste para avaliar riscos e verificar as informações.

    Após dias de conversa com o repórter e com João, eles afirmaram ter nacionalidade inglesa e operarem como recrutadores do Estado Islâmico —facção que, estimam agências de inteligência, tem 25 mil militantes na Síria e no Iraque e 5.000 na Líbia, boa parte deles estrangeira.

    A dupla dizia que sua missão era "levar os vocacionados a lutar na guerra santa, ajudando os irmãos na luta contra o mal". Para auxiliar os escolhidos e atrair mais, os ingleses disseram receber € 10 mil ao mês (R$ 40 mil).

    A reportagem participou de diversos círculos de estudo em Lisboa e Barcelona.

    Nos locais frequentados predominantemente por jovens de perfil diverso, havia mulheres e estrangeiros. Em um dos encontros, sul-americanos estavam presentes, entre eles um argentino.

    Nenhum grupo acompanhado tinha mais de 20 integrantes. Eles dizem receber cerca de 15 novos participantes por mês nesses círculos. Cada vez que o número de frequentadores se aproximava do limite, o grupo era dividido para não gerar suspeitas.

    A PROPOSTA

    Conforme os encontros avançaram, duas opções foram apresentadas: seguir para a Síria, no território controlado pela milícia, ou assumir uma função no exterior. Em ambas, o recruta seria sustentado pelos terroristas.

    A maioria dos recrutados aprovados é encaminhada para treinamento e estudo aprofundado do Alcorão.

    Os principais centros para capacitação, segundo eles, estariam na Bélgica —onde foi descoberta a célula terrorista que planejou os atentados de novembro em Paris e na norte-africana Tunísia, cujos pontos turísticos foram alvo de atentados recentes.

    Homens e mulheres são separados, mas mantidos em áreas próximas. Durante o treinamento intensivo, os recrutas teriam todos os custos financiados pela milícia e se hospedariam em locais mantidos por elas, disse a dupla.

    João explicou que nos treinamentos é intensificada a pregação ideológica e testada a fé dos futuros extremistas. Na versão dos supostos milicianos, o objetivo é "estudar melhor o Alcorão".

    Estado Islâmico

    Um dos braços de aliciamento, disseram eles, está infiltrado em universidades da Europa, por meio dos grupos de estudo islâmico.

    Alguns desses grupos são organizados e financiados por mesquitas para converter adeptos. Nesses locais, existem pessoas denominadas "satélites", que atuam como "olheiros" em busca de jovens que demonstrem possíveis tendências radicais.

    Como aconteceu com a reportagem, possíveis recrutas são convidados para círculos de estudo radicais, que costumam se reunir em residências a poucos quilômetros das universidades, afirmaram os supostos recrutadores.

    Esses núcleos, explicaram, funcionam como segundo filtro para verificar a intensidade de interesse do postulante. Nem todo grupo tem ligação com extremistas, a maioria deles só estuda o Alcorão.

    Para os radicais, estudantes estrangeiros são os mais cobiçados. A tática descrita pela dupla explora o fato de essas pessoas conhecerem mal a cidade e viverem sós —os grupos de estudos são uma possibilidade para conhecer outras pessoas, o que torna a adesão mais rápida e eficaz.

    Em alguns casos, como o de João, os aliciadores dão dinheiro aos recrutas. Além de estrangeiros, são visados jovens sem emprego e com problemas de adaptação social.

    Os supostos militantes disseram que buscam mais do que combatentes.

    "Procuramos pessoas que não apenas peguem em armas, queremos influenciadores. Queremos agir como uma bactéria, sem sermos detectados até estarmos em todos os lugares e sermos incontroláveis", afirmou um deles.

    A tática é uma mudança na estratégia da facção, que tenta ampliar sua presença utilizando nativos de cada país.

    Quem prefere ir para a Síria, costuma seguir para a Tunísia, depois para a Turquia e dali por terra até o território dominado pelo EI.

    Quem opta por permanecer na Europa passa pelo treinamento e é levado a um líder geograficamente próximo para continuar o aprendizado até poder liderar o próprio grupo recrutador. Para isso, também é financiado.

    Estado Islâmico na Deep Web

    A SAÍDA

    A reportagem ouviu pedidos insistentes para seguir para o treinamento. O fato de vir de um país sem histórico de ação terrorista islâmica facilitaria seu trânsito global.

    A dupla afirmou que, no caso de voltar ao Brasil para se preparar para o treinamento, seria possível se reunir com grupos que surgem na região da Tríplice Fronteira com Argentina e Uruguai. A área é suspeita de abrigar uma rede de financiamento a extremistas, segundo a polícia do Brasil e dos EUA.

    Com ajuda de João, o repórter agradeceu o convite e informou aos supostos recrutadores que voltaria após ir ao Brasil tratar da retomada de seus estudos universitários e buscar sua noiva.

    Ouviu que o contato seria mantido, o que ocorreu.

    João, por sua vez, deixou a fé meses depois, desistiu de ir à Síria e, diz, cortou todos os laços com o extremismo.

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