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    Lobby evangélico faz chavismo seguir conservador, diz deputada transgênero

    SAMY ADGHIRNI
    DE CARACAS

    29/03/2016 17h00

    Carlos Garcia Rawlins/Reuters
    Tamara Adrian shouts as she arrives to register her candidacy for the upcoming parliamentary elections at an office of the National Electoral Council (CNE) in Caracas August 7, 2015. The first transgender politician to run for popular election in Venezuela on Friday registered as candidate for Congress as part of the opposition bloc, promising to advance gay rights in the traditionally macho South American society. Lawyer and gay rights activist Adrian aims to register as a woman, though she had to register under her given name Thomas Adrian despite a 2002 sex change and it remains unclear if electoral authorities will categorize her as a woman. REUTERS/Carlos Garcia Rawlins ORG XMIT: VEN04
    Tamara Adrián ao chegar a escritório do Conselho Nacional Eleitoral para registrar sua candidatura

    Ao longo dos últimos anos, a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) conquistou alguns direitos no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina.

    Na Venezuela, porém, a situação se deteriora, segundo a maior expoente da causa no país, a deputada suplente Tamara Adrián, 61, primeira transexual a atuar no Legislativo do país.

    Eleita em dezembro pelo partido Vontade Popular, da ala opositora mais radical, Adrián disse à Folha que o chavismo segue cartilha conservadora em matéria de direitos LGBT em grande parte devido à aliança com igrejas evangélicas.

    A deputada suplente, doutora em Direito pela Universidade de Paris II e fluente em cinco idiomas, português inclusive, disse enxergar avanços na percepção da opinião pública sobre o tema e rebateu a tese de um líder opositor de que a Venezuela tem preocupações mais urgentes do que defender direitos LGBT.

    *

    Folha - A senhora aparece no registro oficial dos deputados e suplentes da Assembleia Nacional como Tamara ou como Tomás Adrián, seu nome de nascimento?

    Tamara Adrián - A comunidade trans no mundo inteiro exige o direito ao esquecimento do nome antigo. Fui eleita com meu nome legal porque até agora minha mudança [de sexo] não foi reconhecida. Apresentei recurso em 2004. Meu caso chegou até à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    O trâmite foi finalmente admitido no dia 1º de março. Ou seja, o processo andou pela primeira vez após 11 anos de atraso. Acho que decidiram dar seguimento porque a Venezuela passará pelo Exame Periódico Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU em outubro. Os chavistas sabem que o tema LGBT se tornou muito importante a nível mundial. Em todo caso, isso deixa claro que, enquanto a maioria dos países da região avançou em matéria de direitos LGBT, a Venezuela retrocedeu.

    Como se manifesta esse retrocesso?

    Entre 1977 e 1998, a identidade trans era reconhecida em casos de operação genital por via judicial. Mas desde 1998 [eleição de Hugo Chávez] não houve reconhecimento de nenhuma pessoa transgênero sequer. A Lei Orgânica de Registro Civil permite apenas mudança de nome, mas não aceita mudança de gênero no documento de identidade. As pessoas trans estão numa situação terrível em que sua identidade legal não corresponde à sua identidade física, psíquica ou social.

    Mas o chavismo diz defender todas as minorias, inclusive a comunidade LGBT.

    A única coisa que o chavismo fez foi adotar quatro leis inócuas. Uma diz que nenhum órgão do Estado pode cometer discriminação. Outra proíbe anúncios de venda ou aluguel de imóveis que tragam restrição em função da orientação sexual.

    Uma terceira proíbe discriminação no trabalho e outra exige dos bancos tratamento igualitário independentemente da orientação sexual. Mas não há reconhecimento de união nem direito à adoção. Aliás, a Lei Orgânica de Proteção à Criança e ao Adolescente foi reformada em 2007 para dificultar ainda mais a adoção ao determinar que ela só pode ser permitida para casais formados por um homem e uma mulher.

    Houve avanços significativos no Uruguai, no Chile, na Argentina e no Brasil, onde uma sentença do Supremo Tribunal Federal [2011] reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo. Enquanto isso, o artigo 77 da Constituição venezuelana determina que só pode haver casamento entre um homem e uma mulher.

    A sociedade venezuelana é muito conservadora?

    Estudei bastante a teoria da mudança social. O processo de muitas destas mudanças começa com apoio popular muito baixo, em torno de 20%, até subir gradativamente. A única pesquisa de opinião feita na Venezuela sobre o tema indicou, em 2013, que 52% da população era contra o casamento igualitário. Isso é um dado bom pois significa que a aprovação está em mais de 47%. Subiu muito sem que tenha havido sequer uma discussão na sociedade.

    O Plano da Pátria [espécie de roteiro ideológico do chavismo] disse que iria debater o tema, mas o governo nunca foi além de declarações. Num vídeo gravado durante visita a Itália [em 2009], Chávez disse que o casamento igualitário não é bem visto pela sociedade. Os ataques do [atual presidente, Nicolás] Maduro contra [o então candidato à Presidência Henrique] Capriles na campanha de 2013 foram lamentáveis.

    Pior ainda foi quando o deputado chavista Pedro Carreño chamou Capriles de "maricón" ["veado", em espanhol] em plena Assembleia Nacional e exigiu que saísse do armário. Parte da explicação é que o chavismo se alimentou do lobby evangélico. Na legislatura parlamentar de 2005-2010, cerca de 30% dos deputados eram evangélicos. Hoje a proporção é menor, mas essa relação ainda existe.

    Jesus Torrealba, secretário-geral da aliança opositora da qual a senhora faz parte, a MUD, disse que a Venezuela tem preocupações muito mais urgentes que os direitos LGBT. O que responde?

    Acho que ele tem razão e ao mesmo tempo está equivocado. Mudanças de políticas públicas dependem do Executivo. É imprescindível, por exemplo, derrogar a Lei de Preços Justos [controle de preços] e libertar os presos políticos. Mas o desamparo jurídico das pessoas LGBT é um problema vital para as pessoas desprotegidas.

    Em dezembro um homem que vivia com seu parceiro havia sete anos foi sequestrado e morto em Caracas. Sabe o que a família do morto fez? Entrou no apartamento do casal, pegou todas as coisas e mudou a fechadura para impedir que o parceiro ficasse com os pertences. E quem protege essa pessoa, que tinha uma vida em comum com seu parceiro e fica literalmente no olho da rua da noite para o dia?

    Na Venezuela há tanta discriminação contra jovens trans que muitos saem do sistema educativo e não conseguem trabalho. Sem formação e sem amparo familiar ou jurídico, muitos se prostituem. O tema pode parecer invisível, mas quem sofre com isso acaba ficando sem recursos, sem educação e sem identidade.

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