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    Estado Islâmico deixa rastro de desconfiança e sectarismo

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO
    ENVIADA ESPECIAL A TAL ABYAD (SÍRIA)

    03/04/2016 02h00

    A facção terrorista Estado Islâmico perdeu 25% de seu território e quase 30% de seus 35 mil militantes desde 2015. Na semana passada, as tropas do ditador sírio Bashar al-Assad reconquistaram a cidade histórica de Palmira, e os EUA mataram no Iraque um dos principais líderes da facção terrorista.

    Mas em Tal Abyad e outras cidades sírias, as derrotas do EI estão longe de trazer paz.

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    Após a expulsão dos extremistas, as tensões sectárias se aprofundam, uma vez que habitantes árabes sunitas são vistos com desconfiança, apontados como colaboradores do EI.

    Já a milícia curda YPG (os curdos são uma etnia distinta) é acusada de promover "limpeza étnica" ao expulsar árabes de suas casas.

    Autoridades curdas rechaçam as acusações de perseguição aos árabes, mas admitem suspeitar de infiltração de "espiões". E, no fim do ano passado, obrigaram famílias que tinham algum integrante no EI a deixar as cidades.

    "Alguns árabes ainda cooperam com o Daesh [acrônimo em árabe para Estado Islâmico]: eles têm parentes em Raqqa [proclamada capital do EI na Síria] e passam informações", diz o comandante da YPG Khabat Alim.

    ESTADO ISLÂMICO NA DEFENSIVAFacção perdeu cerca de 25% do território desde jan.2015

    SAIR OU MORRER

    O EI conquistou em junho de 2014 Tal Abyad, onde cerca de 60% da população era árabe e o restante se dividia entre curdos, turcomenos e cristãos.

    Na época, os extremistas anunciaram pelos alto-falantes das mesquitas que todos os curdos que não saíssem da cidade seriam mortos. Também determinaram que todas as propriedades dos curdos seriam "halal" (permitidas) para árabes sunitas. Milhares de civis fugiram.

    Em junho de 2015, os curdos reconquistaram Tal Abyad, que era o ponto de entrada de extremistas estrangeiros e armas vindos da Turquia. Mas, desde então, o EI já atacou 11 vezes a cidade.

    Na última vez, no fim de fevereiro, mais de 200 extremistas participaram da ofensiva, que levou à morte de quase 400 pessoas. Muitos entraram "disfarçados" de soldados curdos.

    "Eles ainda têm muitas células secretas aqui, muitos infiltrados", diz Muhammad Khisman, vice-presidente do município. Pessoas acusadas de ajudar os militantes foram presas.

    A maioria dos árabes ficou na cidade durante o domínio do EI, mas nem por isso colaborou com os extremistas.

    O barbeiro Abu Juma, 24, foi preso e levou 30 chibatadas porque estava aparando a barba de clientes. O EI proíbe os homens de se barbear. "Foi um pesadelo, ficamos na cidade porque não tínhamos opção", conta.

    "Era um horror, minha mulher não podia sair de casa, pessoas eram decapitadas, quem era pego fumando ficava preso em uma jaula no meio da cidade", diz Mahmoud, 41, dono de uma loja.

    Segundo ele, muitas pessoas foram obrigadas a trabalhar com o EI senão iam morrer de fome. "Nos sentimos muito mal quando eles expulsaram os curdos, nós estamos vivendo lado a lado aqui há centenas de anos."

    Vigora a lei do silêncio entre muitos árabes da cidade, que temem retaliações da milícia curda, a YPG. Poucos se dispuseram a falar com a reportagem.

    Já entre os curdos, reinam a desconfiança e o medo de novos ataques. A cidade impõe um toque de recolher às 20 horas e proibiu motos, depois de uma ataque suicida em dezembro.

    "Tenho muito medo de que o Daesh volte", diz o comerciante curdo Khalil Khasman, de 42 anos. Depois que o EI invadiu, ele fugiu com a mulher e os sete filhos e passou 15 meses na Turquia.

    "Agora, estamos tentando reconstruir a cidade e as relações entre curdos e árabes", diz. "Mas é difícil. Meu vizinho, por exemplo, era árabe e se uniu ao EI. Não consigo perdoar uma pessoa que matou amigos e parentes meus, e destruiu minha casa."

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