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    Policiais se disfarçam para prender em flagrante usuários de drogas nos EUA

    JOSEPH GOLDSTEIN
    DO "NEW YORK TIMES", EM NOVA YORK

    06/04/2016 08h28

    O viciado em crack de 55 anos de idade estava contando trocados diante de uma loja de bebidas no Harlem. Ele tinha pouco mais de um dólar, e faltavam 35 centavos para que pudesse comprar até mesmo a mais barata das garrafas.

    O viciado em heroína de 21 anos estava sentado em um McDonald's no Lower East Side, imaginando quando sua avó lhe mandaria mais dinheiro. Ele era morador de rua, levava 84 centavos de dólar no bolso e tudo que tinha no mundo estava guardado em duas sacolas de lona que carregava com ele.

    Karsten Moran/The New York Times
    Bryan L., jovem de 21 anos viciado em heroína, que foi preso pela polícia
    Bryan L., jovem de 21 anos viciado em heroína, que foi preso pela polícia

    Os dois foram abordados por pessoas que lhes pediram ajuda para comprar drogas. Usando dinheiro fornecido pela pessoa desconhecida que os abordou, cada um dos viciados procurou um traficante em sua área, voltou com drogas, as entregou ao suposto comprador e terminou preso, acusado de crime de tráfico de drogas. As pessoas que pediram ajuda para comprar drogas eram policiais disfarçados da polícia de Nova York.

    Uma revisão dos julgamentos desses casos e dois outros ilumina o que parece ser uma tática para processos contra transações de drogas em pequena escala: um policial disfarçado fornece o dinheiro para a transação e pede a um viciado ajuda para comprar entre US$ 20 e US$ 40 em crack ou heroína. Quando o viciado – talvez na esperança de ganhar um pouco de droga como recompensa – o faz, termina preso.

    No caso do viciado de 21 anos que estava no McDonald's, a policial disfarçada era uma mulher desmazelada que dava a impressão de estar a ponto de sofrer problemas por conta da abstinência, depôs o acusado. Em um dos outros casos, o policial permitiu que o viciado usasse o seu celular para ligar para um traficante.

    É impossível determinar o quanto o uso dessa tática se generalizou, mas os quatro casos recentes revisados pelo "New York Times" despertam questões perturbadoras sobre a equanimidade e efetividade do uso de policiais disfarçados pelo departamento de polícia da cidade. Os policiais não detiveram e nem perseguiram os traficantes que venderam drogas aos viciados. Ao invés disso, ficaram esperando nas redondezas do local da transação até que o viciado retornasse com as drogas, antes que outros policiais interviessem para realizar as detenções.

    As táticas do departamento e a decisão da procuradoria de levar adiante casos como esses atraíram críticas de advogados de defesa e jurados. Em entrevistas – e, em um caso, em uma carta à procuradoria –, jurados questionaram os motivos da polícia para perseguir de maneira tão agressiva viciados em situação precária. Tanto o homem de 21 anos como o de 55 foram absolvidos das acusações criminais.

    A tática parece contrariar as posições públicas de alguns políticos que são referências policiais e de justiça do município, como prefeito Bill de Blasio, democrata, e o procurador distrital de Manhattan, Cyrus Vance Jr., que expressaram apoio à redução de sentenças de prisão e a população carcerária, buscando maneiras de tratar problemas de saúde mental e vício.

    Michelle V. Agins/The New York Times
    O McDonald's no Lower East Side de Manhattan
    O McDonald's no Lower East Side de Manhattan

    "Todos nós falamos muito, na cidade, sobre a crise de saúde pública que o vício em drogas representa, e no entanto adotamos uma postura muito regressiva quanto a encarcerar pessoas", disse Tina Luongo, que comanda a divisão de assistência judicial criminal da Legal Aid Society.

    No ano passado, cerca de cinco mil pessoas foram formalmente acusadas de traficar pequenas quantidades de heroína ou cocaína, em Nova York, e em 2014 pouco mais de seis mil enfrentaram acusações desse tipo. Mas o número de casos de compra de drogas e subsequente prisão contra viciados é desconhecido. A vasta maioria das acusações por tráfico de drogas termina resolvida por acordo, de modo que existam poucos julgamentos dos quais possam ser inferidas distinções desse tipo.

    Reginald J., o viciado de 55 anos, concordou em conversar com um repórter sob a condição de que apenas a primeira letra de seu sobrenome fosse usada para identificá-lo. Na entrevista, ele articulou uma das questões básicas nesse tipo de operação: para um viciado, é difícil dizer não.

    "Quando ele coloca o dinheiro em minhas mãos, deixe-me dizer o que acontece, como viciado", afirmou Reginald L.. "Eu gostaria de imaginar que consigo resistir, mas sei que já é possível [resistir]. Minha experiência demonstra que mil vezes em cada mil, não vou conseguir".

    Em um julgamento, em janeiro, um acusado testemunhou que havia mostrado ao policial disfarçado as marcas de picadas em seu braço. Em outro julgamento, em dezembro, o acusado testemunhou ter falado ao policial disfarçado sobre seu desejo de se livrar do vício. "Sabe de uma coisa? Nós dois deveríamos deixar de nos drogar", relatou o acusado, Mitchell Coward, em seu depoimento. "Foi o que eu disse a ele".

    Joan Vollero, porta-voz da procuradoria de Manhattan, que respondeu pela acusação em três dos quatro casos revisados pelo "New York Times", se recusou a dizer se a procuradoria considerava esse tipo de operação encoberta como apropriada. Disse, porém, que em alguns casos, os viciados que se declararam culpados de acusações criminosas por tráfico de drogas foram encaminhados a tratamento e não à prisão.

    As autoridades policiais e de justiça dizem que operações de policiais disfarçados continuam a ser a resposta necessária e sensata às queixas locais sobre tráfico de drogas e uso de narcóticos. Por exemplo, o McDonald's do Lower East Side – onde a policial disfarçada abordou o viciado em heroína de 21 anos de idade – foi causa de dezenas de queixas da comunidade local sobre tráfico e uso de drogas, dentro do restaurante ou em torno dele, a polícia afirmou.

    "Eles vão a locais nos quais tenham havido incidentes anteriores", disse Brian McCarthy, o chefe assistente de polícia que responde pela divisão de narcóticos, em entrevista. "E aos locais onde houve queixas das comunidades".

    Desde dezembro, juízes e júris de Manhattan absolveram réus com "acusação principal" em três dos casos revisados, e o quarto julgamento resultou em impasse no júri. Em cada caso, um investigador disfarçado abordou homens, em geral aleatoriamente, em locais onde a polícia acreditava que havia tráfico de drogas.

    Karsten Moran/The New York Times
    Reginald J., homem de 55 anos que é viciado em heroína
    Reginald J., homem de 55 anos que é viciado em heroína

    Brian L., o viciado de 21 anos abordado no McDonald's, também concordou em ser entrevistado sob a condição de que só a primeira letra de seu sobrenome fosse usada. Ele descreveu ser abordado por uma mulher desmazelada, que parecia ansiosa, e se aproximou da mesa em que ele estava conversando com um amigo. A mulher, uma policial disfarçada, diria mais tarde ter selecionado aleatoriamente a mesa que abordou.

    "Brian L. me disse que era morador de rua e não tinha onde ficar, batemos papo", disse a policial, identificada apenas como nº 279 em seu depoimento, feito em janeiro.

    Brian L. disse que a policial disfarçada afirmou que estava morando com sua avó no Brooklyn e estava preocupada por estar a ponto de começar a mostrar sintomas de abstinência pela falta de drogas.

    "Eu disse que a ajudaria", ele depôs. Os três saíram andando juntos do McDonald's, na esquina das ruas Delancey e Essex, e foram à Rua Seis Leste, onde Brian L. disse que comprava heroína frequentemente. A cerca de um quarteirão de distância, ele disse à mulher e ao seu amigo que esperassem, nos degraus de uma escola. A policial disfarçada lhe deu US$ 20. Ele retornou com dois saquinhos plásticos contendo drogas, que entregou à policial. Minutos mais tarde, foi preso.

    Ele tinha menos de um dólar em moedas em seu poder, e nenhuma droga, um policial depôs mais tarde. Depois da detenção, a polícia registrou as dezenas de objetos, dentre os quais tubos de pasta de dente, chapéus de inverno e bichos de pelúcia, que Brian L. carregava em duas sacolas de lona.

    Seu advogado, Sam Roberts, da Legal Aid Society, perguntou ao detetive David Guevara, um dos investigadores que trabalharam no caso, se algum dos nove policiais da equipe envolvida havia seguido Brian L. para descobrir onde ele comprou as drogas. A resposta foi não.

    Esse foi um tema comum aos três outros julgamentos, igualmente. Em um, o viciado, que não tinha telefone, usou o celular do policial disfarçado para ligar para o traficante. Mas depois que o viciado foi detido, o policial disfarçado disse que não se recordava de ter ou não usado esse dado e ligado para o número do traficante, registrado na memória de seu celular, a fim de descobrir seu paradeiro.

    O júri levou menos de uma hora para absolver Brian L. da acusação criminal de tráfico de drogas. A maioria dos jurados ficou na sala para conversar com ele, depois do julgamento.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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