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    Após cinco décadas, revolução cultural chinesa ecoa em cemitério solitário

    CHRIS BUCKLEY
    DO "NEW YORK TIMES", EM CHONGQING (CHINA)

    06/04/2016 17h47

    Durante a festa tradicional chinesa em homenagem aos mortos, Zheng Zhisheng costuma ir a um cemitério onde pilares declaram lealdade eterna dos mortos a Mao Zedong. Ele caminha entre valas comuns, compartilhando lembranças e às vezes lágrimas com outras pessoas, que o cumprimentam e o chamam de "comandante dos corpos".

    Eles são veteranos da Revolução Cultural e familiares de veteranos que se reúnem na festa anual de Qingming nos túmulos de familiares e amigos mortos no movimento convulsivo que Mao desencadeou na China.

    Cidades e regiões viraram zonas de batalha entre Guardas Vermelhos rivais –grupos de estudantes militantes que atacavam intelectuais, autoridades e outros. Segundo estimativa recente, até 1,5 milhão de pessoas morreram em todo o país.

    Mas este cemitério em Chongqing, cidade industrial às margens do rio Yangtzé, é o único grande reservado unicamente para os mortos da época. Zheng, 73, é um dos guardiões de suas histórias angustiantes. Ele sepultou muitos dos 400 a 500 corpos enterrados aqui, ao lado de um parque no distrito de Shapingba.

    Gilles Sabrie - 01.jun.2011/The New York Times
    FILE -- The closed gates of a Cultural Revolution cemetery in Chongqing, China, June. 1, 2011. This year, 2016, marks fifty years since the start of the Cultural Revolution, and the cemetery embodies Chinaâ€s truncated, censored reckoning with its legacy. Here the tension between official silence and grassroots remembrance is palpable. (Gilles Sabrie/The New York Times) ORG XMIT: XNYT16 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Os portões fechados do cemitério em Chongqing, na China, onde estão mortos da Revolução Cultural

    "Penso nas recordações deles e nas lições que precisamos aprender e procuro reconfortar os familiares", diz ele. "Mas apagar aquela época de nossos corações seria impossível."

    O cemitério geralmente fica trancado. Mas no feriado de Qingming –o feriado da varredura de túmulos–, as portas se abrem para que familiares e amigos dos mortos façam vigílias, acendam bastões de incenso e deixem coroas de flores ou outras oferendas nos túmulos.

    Neste ano a direção do cemitério tomou precauções especiais, estendendo arame farpado ao longo do topo do muro que cerca o local. Câmeras de vigilância foram montadas na entrada, além de cartazes em chinês e inglês dizendo "preservação histórica, é proibido fazer fotos".

    No dia de Qingming, que neste ano ocorreu numa segunda-feira, grupos de idosos se inscreveram em um estande para entrar no cemitério; alguns estavam acompanhados por casais com filhos pequenos. Dezenas de guardas afastavam espectadores e jornalistas, dizendo que não podiam fazer fotos. "Não há nada para ver", disse um deles. "Vão embora!"

    De acordo com estimativa oficial de He Shu, cronista extraoficial da cidade na época, cerca de 1.700 pessoas foram executadas em Chongqing durante os piores confrontos, que diminuíram em 1968. O total de mortos provavelmente foi maior.

    A maioria dos mortos na cidade tombou em enfrentamentos entre jovens armados com fuzis, metralhadoras, morteiros e até três navios blindados que bombardearam o litoral.

    Muitos eram operários de fábricas. Alguns tinham sido condenados pelos Guardas Vermelhos; outros eram transeuntes ou espectadores que acabaram envolvidos nos choques. Estão enterradas no cemitério vítimas de apenas 14 anos; segundo um relato, uma delas tinha apenas seis anos de idade.

    Enquanto os corpos eram empilhados na rua, decompondo-se sob o sol, líderes de uma facção recrutaram Zheng, que era estudante de engenharia, para dar cabo deles.

    Num abrigo antiaéreo de temperatura baixa, Zheng aprendeu a injetar formol nos corpos. Em seguida, escolheu o local do parque para enterrá-los, usando como ajudantes prisioneiros capturados da facção rival. Alguns dos mortos foram fotografados em seus uniformes da Guarda Vermelha –roupas de estilo militar, cintos, boinas e distintivos– ao lado de seus companheiros e familiares orgulhosos.

    "Eu pessoalmente sepultei mais de 280 pessoas", contou Zheng. "Eu banhei os corpos e apliquei injeções de formol neles, os vesti e os pus nos túmulos; por isso meu apelido era 'comandante dos corpos'. Todos nós fomos objetos sacrificais em uma luta política."

    Com o enfraquecimento da Revolução Cultural e a morte de Mao, cerca de 20 cemitérios do movimento foram destruídos. Este cemitério sobreviveu em parte por sua localização distante e graças a um secretário tolerante do Partido Comunista na cidade na década de 1980, disse Everett Yehong Zhang, antropólogo de Chongqing na Universidade Princeton.

    Mas, com o cinquentenário da Revolução Cultural, o passado contido no cemitério virou tema delicado. Voltar atenção àquele período contraria a campanha do presidente Xi Jinping de ignorar os erros cometidos por Mao e o partido. Apesar de sua própria família ter sofrido muito na Revolução Cultural, o presidente prefere focar glórias passadas.

    Não foram anunciados eventos oficiais para marcar a data, e nenhuma das notícias sobre o Qingming divulgadas pela imprensa estatal mencionaram os mortos da Revolução Cultural.

    "O Partido Comunista não quer reabrir essa ferida", explicou Xi Qingsheng, 64, cuja mãe, Huang Peiying, foi sepultada no cemitério depois de ser morta a tiros quando fugia dos combates com Xi e um de seus irmãos. Um Guarda Vermelho os usou como alvos para praticar tiro ao alvo, disse Xi.

    "Nós, as famílias que foram vítimas diretas, sofremos demais. Queimamos incenso, nos ajoelhamos diante dos túmulos. Eu ainda venho ao cemitério todos os anos para fazer uma refeição com minha mãe e deixar algumas oferendas para ela."

    Para chegar aos túmulos, escondidos entre as árvores, as pessoas caminharam por um parque onde crianças se divertiam com brinquedos e homens e mulheres jogavam mah-jongg em mesas ao ar livre. Adolescentes em um grupinho se fotografavam, aparentemente ignorando os túmulos ao lado.

    "Do lado de fora do cemitério é a sociedade normal, com casais de namorados e a busca por coisas comuns", comentou o ex-Guarda Vermelho Zhou Xiren, 72, de Chongqing. "Do lado de dentro, é a volta a uma era em que as pessoas morriam por seus ideais."

    Cerca de 120 pilares e lápides de pedra e concreto marcam sepulturas construídas principalmente por escolas e fábricas para seus mortos. As inscrições recordam uma época em que Mao, para muitos, era quase um semideus. Morrer em nome dele era sinal de martírio glorioso.

    "Cabeças podem rolar, sangue pode jorrar, mas o pensamento de Mao Zedong nunca deve desaparecer", diz uma inscrição em um dos pilares.

    "Aqui a história foi congelada em uma pilha de pedras", disse Zhou, recordando um poema que escreveu sobre sua primeira visita a este lugar. "Assim como não dá para não falar no campo de concentração de Auschwitz ou na bomba nuclear de Hiroshima quando se fala da Segunda Guerra Mundial, precisamos nos lembrar deste período da história para que ele não possa se repetir."

    Mao lançou a "Grande Revolução Cultural Proletária" em 1966 para expurgar da China as conciliações "revisionistas" que, segundo ele, colocavam sua revolução em risco. Ele autorizou estudantes militantes a aplicar sua vontade. Mas o movimento assumiu um rumo caótico, e rivalidades violentas surgiram entre diferentes facções de Guardas Vermelhos que competiam para representar a visão de Mao.

    Em Chongqing, os cismas viraram guerra no verão de 1967, quando militantes tomaram armas das fábricas de armamentos. A maioria das pessoas sepultadas no cemitério de Shapingba era a favor da facção 15 de Agosto, que combatia a facção Rebeldes até o Fim.

    "Tínhamos oito grandes fábricas de armamentos que produziam tanques, fuzis e outros artigos, e muitos dos operários eram ex-soldados que sabiam combater", comentou Wu Qi, empresário de Chongqing que assistiu aos combates quando era adolescente. "Foi como uma batalha militar de verdade."

    As vítimas que nunca saíram da cabeça de Zheng não estão sepultadas neste cemitério. Em agosto de 1967, depois de sua facção 15 de Agosto ser alvo de um ataque feroz, Zheng, em um ataque de fúria, entregou dois prisioneiros à multidão, que os pisoteou até desmaiarem. Dois dias depois, Zheng deixou dois Guardas Vermelhos espancá-los até a morte. Seus corpos foram jogados numa vala no campus da universidade.

    "Foi a coisa da qual mais me arrependo na vida", disse Zheng. Ele ainda se lembra dos nomes das vítimas: Li Pingzheng e He Minggui.

    Zheng foi preso em 1970 e condenado por envolvimento em seis mortes, embora diga que não teve nenhuma participação em algumas delas. Ficou encarcerado até 1983. Ele disse que sonha em encontrar as famílias de Li e He e pedir perdão a elas na TV nacional.

    "Não há sinal que mostre onde eles estão enterrados", comentou. "Mas eu gostaria de falar às suas famílias onde encontrar seus corpos."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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