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    'Talaq', a palavra que dá o divórcio aos homens muçulmanos na Índia

    DA BBC BRASIL

    25/04/2016 04h53

    O mundo de Shayara Bano veio abaixo em outubro de 2015.

    Mãe de dois filhos, com 35 anos de idade, ela estava fazendo um tratamento médico na casa dos pais em Uttarakhand, no norte da Índia, quando recebeu um telegrama do marido. A mensagem comunicava à mulher que ele estava se divorciando dela. Os dois estavam casados havia 15 anos.

    Bano tentou, sem sucesso, entrar em contato com o marido –que vive na cidade de Allahabad.

    "Ele desligou o celular, não tenho como entrar em contato com ele", disse à BBC. "Estou preocupada com o futuro dos meus filhos, suas vidas estão sendo arruinadas."

    A Índia é talvez o único país no mundo onde um homem muçulmano pode se divorciar de sua mulher em questão de minutos. Tudo o que ele precisa fazer é dizer à mulher a palavra talaq (divórcio) três vezes.

    Frustrada com a situação, Shayara Bano entrou com um pedido na Suprema Corte da Índia para que a prática, conhecida como tripla talaq, seja proibida no país. O pedido foi aceito e, agora, o tribunal estuda a possibilidade de declará-la "inconstitucional".

    'TALAQ' POR WHATSAPP

    Os muçulmanos compõem uma importante minoria indiana, totalizando 155 milhões de pessoas. Seus casamentos e divórcios são governados pela chamada "Lei Pessoal Muçulmana" –fortemente influenciada pela Lei Islâmica (ou sharia).

    Embora tenha sido adotada há várias décadas na Índia, a tripla talaq não é mencionada na sharia ou no livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão.

    Estudiosos do Islã dizem que o livro explica claramente os procedimentos para o divórcio. O processo deve durar três meses, dando ao casal tempo para reflexão e reconciliação.

    Militantes que lutam pelo fim da prática dizem que ela foi proibida na maioria dos países islâmicos, incluindo Paquistão e Bangladesh.

    Na Índia, no entanto, apesar de mais de uma década de campanhas, a situação parece estar piorando.

    Auxiliados por tecnologias modernas, homens muçulmanos usam mensagens de texto, Skype, WhatsApp e até Facebook para pronunciar o divórcio.

    Em novembro, o grupo militante Bharatiya Muslim Mahila Andolan (BMMA - Movimento das Mulheres Muçulmanas Indianas), divulgou um relatório detalhando quase cem casos de tripla talaq.

    "Desde 2007, tivemos conhecimento de muitos casos, e centenas de mulheres tiveram as vidas arruinadas, e ficaram sem ter para onde ir", disse a professora Zakia Soman, fundadora do BMMA.

    Na maioria dos casos compilados pelo BMMA, as mulheres divorciadas vêm de famílias pobres e dizem que seus maridos não estão cumprindo suas obrigações –como o pagamento de pensões, por exemplo– forçando-as a retornar para as casas dos pais ou a buscar formas de autossustento.

    Muçulmanos indianos também seguem uma prática conhecida como halala –na qual uma mulher divorciada tem de se casar com outro homem e consumar o casamento de forma a poder voltar para o antigo marido.

    "A Índia é o único país no mundo onde essas práticas, que não estão presentes no Alcorão, existem. São bárbaras e totalmente inaceitáveis. É necessária uma revisão completa das leis pessoais muçulmanas na Índia", disse a professora Soman à BBC.

    Em outubro, o BMMA escreveu uma carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, exigindo "reformas nas leis muçulmanas de divórcio e poligamia". O grupo também fez uma petição na Suprema Corte do país.

    INTERFERÊNCIAS NO ISLÃ

    Soman disse que a tripla talaq com frequência é endossada por clérigos islâmicos indianos. Talvez por isso, a decisão da Suprema Corte de aceitar o pedido de Shayara Bano tenha sido criticada por importantes grupos islâmicos do país –entre eles o All India Muslim Personal Law Board (AIMPLB, o comitê da Lei Pessoal Muçulmana da Índia).

    Um dos membros do comitê Asma Zehra condenou a prática da tripla talaq, mas disse que os índices de divórcio entre muçulmanos na Índia ainda são muito baixos. Ela afirmou que o problema está sendo exagerado por forças inimigas do Islã.

    "Por que está todo mundo perseguindo nossa religião?", perguntou.

    Zehra disse que a população muçulmana está enfrentando dificuldades para sobreviver sob o governo atual, liderado pelo partido nacionalista Bharatiya Janata.

    Para ela, a atenção dada à prática da tripla talaq acontece "porque eles querem interferir na nossa religião" para introduzir um código civil uniforme. Zehra disse ainda que, embora esse costume não esteja previsto no Alcorão, o comitê não tem o poder de proibi-lo porque o AIMPLB é apenas uma "entidade moral, podemos apenas educar as pessoas".

    A militante Soman, por sua vez, disse que educar não é suficiente.

    "Essas práticas têm de ser declaradas ilegais. É importante que a legislação que regula a vida familiar muçulmana seja codificada de forma adequada. O Alcorão nos deu nossos direitos, as forças patriarcais tiraram esses direitos das mulheres."

    Enquanto isso, na casa dos pais, Shayara Bano aguarda com esperança a decisão da Suprema Corte.

    "Quero que meu marido me receba de volta. Quero justiça."

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