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    Nos EUA, 'código de honra' pune garota que diz ter sido estuprada

    JACK HEALY
    DO "NEW YORK TIMES", EM PROVO (UTAH)

    28/04/2016 11h42

    Antes de poder mudar-se para a residência universitária da Universidade Brigham Young ou matricular-se nas aulas do primeiro ano, Brooke teve que assinar o código de honra da faculdade.

    Em parte diretrizes morais e em parte contrato, o código de honra é um elemento fundamental na vida dos quase 30 mil estudantes da universidade, dirigida por mórmons. Ele recomenda aos estudantes, docentes e funcionários as "virtudes morais abrangidas no evangelho de Jesus Cristo", valorizando a honestidade, castidade e virtude. O código impõe vestimenta modesta no campus e proíbe o consumo de álcool ou drogas, a intimidade entre pessoas do mesmo sexo, a indecência e condutas sexuais erradas.

    Mas Brooke, 20 anos, disse que, depois de contar à universidade que ela foi estuprada por outro estudante no apartamento dele, em fevereiro de 2014, o código de honra foi usado para castigá-la. Ela havia usado LSD na noite do estupro e contou à universidade sobre um encontro sexual anterior, coagido, com o estudante que a violentou mais tarde. Quatro meses depois de denunciar a agressão, Brooke recebeu uma carta do vice-reitor estudantil.

    "Você está suspensa da Universidade Brigham Young a partir de hoje por ter violado o código de honra, incluindo o consumo contínuo de drogas ilegais e a prática de sexo consensual", dizia a carta.

    Nas últimas semanas, Brooke e algumas outras alunas da universidade vieram a público, primeiramente numa conferência de conscientização sobre estupro e depois no jornal "The Salt Lake Tribune", para dizer que foram investigadas com base no código de honra para averiguar se tinham bebido álcool, consumido drogas ou feito sexo consensual na época em que sofreram os estupros.

    "Me trataram de um modo tão pouco cristão, como se eu fosse pecadora", disse Brooke, que concordou em ser identificada pelo primeiro nome. "Não houve dó e nem perdão."

    Os relatos das estudantes provocaram um debate nacional sobre o tratamento desigual dado às vítimas de agressões sexuais neste campus religioso, onde se reúnem estudantes mórmons de todo o mundo e as saias das mulheres devem ficar abaixo do joelho e os homens são proibidos de usar barba. O furor inclui críticas ao tratamento dado pela universidade a pessoas que sofreram agressões sexuais, em sua pressão de defender um código moral que está na base de sua identidade.

    Alguns especialistas em questões jurídicas e de gênero em campi universitários consideram preocupante a abordagem seguida pela Universidade Brigham Young.

    Disseram que o medo de serem investigados, suspensos ou perder uma bolsa de estudos pode impedir estudantes de denunciar agressões sexuais à universidade, potencialmente deixando que os responsáveis evitem medidas de disciplina.

    "Cria-se uma má vontade sistêmica ou um obstáculo às vítimas que querem apresentar denúncias e acessar os recursos da universidade, levando-as a temer que serão punidas", comentou Brett A. Sokolow, diretor executivo da Association of Title IX Administrators, entidade do setor cujo nome vem de uma lei federal que proíbe a discriminação sexual na educação.

    A política da Universidade Brigham Young em relação a erros de conduta sexual incentiva os estudantes a apresentar denúncias, mesmo que tenham infringido as normas da escola. A universidade diz que qualquer infração das normas é tratada separadamente da investigação sobre a agressão sexual.

    Carri Jenkins, porta-voz da universidade, disse que a prioridade da Brigham Young é apoiar e proteger estudantes que denunciam ter sofrido violência sexual.

    "A Universidade Brigham Young se preocupa profundamente com a segurança de nossos alunos", ela disse em e-mail. "Quando estudantes denunciam uma agressão sexual, nosso objetivo primeiro é assegurar o bem-estar da vítima."

    Às vezes, porém, "vêm à luz fatos indicando que anteriormente a vítima cometeu infrações do código de honra", ela disse, precisando que esses fatos podem ser investigados.

    Muitas outras universidades, seculares e religiosas, têm "cláusulas de anistia" protegendo vítimas que podem se preocupar em ter problemas por infrações feitas no momento das agressões sofridas, como usar drogas ou beber em um dormitório universitário. No ano passado, o Estado de Maryland aprovou uma lei protegendo alunos que denunciam ou testemunham agressões sexuais, impedindo que sofram medidas de disciplina por infringir regras relativas a álcool e drogas.

    "Todas as escolas, incluindo a Universidade Brigham Young, sabem que a violência sexual muitas vezes é acompanhada de álcool e drogas", disse Adele P. Kimmell, advogada da entidade sem fins lucrativos Public Justice, que trabalha com questões de justiça social. "Se a escola quer mostrar aos alunos que a prevenção da violência sexual é encarada com seriedade, precisa ter uma política de anistia."

    Madeline MacDonald é estudante de segundo ano de ciência da computação na Brigham Young. Ela não hesitou em recorrer à universidade em dezembro de 2014, quando um encontro com alguém que ela conheceu no Tinder (rede social que promove encontros) virou agressão sexual. MacDonald, que concordou que seu nome completo fosse publicado, disse que o homem – que não era aluno da universidade – a levou de carro até uma caixa d'água fora do campus, tirou sua roupa, a bolinou e se masturbou contra o corpo dela, mesmo depois de ela lhe ter dito "não" diversas vezes.

    No dia seguinte ela procurou o escritório da Title IX na universidade, que recebe denúncias de violência sexual, e fez um relato detalhado do que aconteceu. Recentemente ela soube que no mesmo dia o setor da universidade responsável pelo código de honra abriu uma investigação sobre ela.

    "Quinze dias se passaram sem que eu tivesse a menor ideia do que estava acontecendo. Ninguém queria falar comigo", ela contou.

    A universidade acabou admitindo que ela tinha sido sexualmente agredida e lhe ofereceu serviços de apoio. Em separado, ela recebeu um telefonema informando-a de que não sofreria medidas de disciplina sob o código.

    Estudar na Universidade Brigham Young sempre pareceu a MacDonald, que cresceu em Seattle, o caminho natural a seguir. Seus familiares tinham se formado na universidade e costumavam acordá-la com a canção de luta da instituição.

    Ela resolveu continuar na universidade, apesar do que viveu. "É uma política realmente horrível", comentou.

    O Departamento Federal de Educação pede que as universidades garantam que suas políticas de disciplina não desencorajem estudantes de denunciar agressões sexuais. Além disso, diz o departamento, as normas das universidades devem sempre lembrar às pessoas que sofreram violência sexual que seu consumo de álcool ou drogas não representa um convite à violência sexual.

    Madi Barney, 20, contou que teve tanto medo de sofrer sanções pelo código de honra da Brigham Young que, em setembro passado, esperou quatro dias até ir à polícia de Provo para denunciar que foi estuprada em seu apartamento fora do campus por um homem que conhecia e que não era aluno da instituição.

    "Fiquei chorando e dizendo ao policial que eu não podia levar a denúncia adiante porque a universidade me expulsaria", falou Barney.

    Mas o boletim de ocorrência policial sobre seu estupro acabou chegando às mãos da universidade de qualquer maneira depois de Nasiru Seidu, o homem acusado do estupro, o deu a um conhecido que era vice-xerife do condado de Provo, conforme revelam documentos legais. O vice, Edwin Randolph, encaminhou o boletim à universidade.

    Seidu e Randolph foram acusados criminalmente de retaliação contra uma testemunha, mas acusações acabaram arquivadas posteriormente.

    Mais tarde, a universidade procurou Madi Barney, pedindo uma reunião com ela. No mês passado, o advogado da universidade, Stephen Craig, enviou um e-mail ao advogado de Barney dizendo que, embora a universidade não tivesse buscado acessar o boletim de ocorrência, ela "tem a obrigação perante ela própria e seus alunos de investigar relatos dignos de crédito sobre violações do código de honra".

    "Entendo que isso é decepcionante para o senhor e para Madison", escreveu Craig ao advogado. "Mesmo assim, a universidade implementa seu código de honra."

    Em 4 de março o advogado da Brigham Young escreveu para dizer que Barney poderia concluir o semestre letivo, mas que seria impedida de matricular-se em outros cursos "enquanto os problemas com o código de honra não fossem resolvidos".

    Barney fez seu exame final na Brigham Young este mês e decidiu que não quer voltar à universidade.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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