O governo brasileiro, assim como o norte-americano, não reconhece o massacre da população armênia em 1915, que completou 101 anos em 24 de abril, como um genocídio.
Mas, no início do século 20, a existência de um Estado armênio e a situação de seus refugiados foi a primeira questão humanitária em que o Brasil tentou se envolver, segundo o pesquisador Heitor Loureiro, que defende na Unesp doutorado sobre o tema.
Loureiro diz que a causa foi instrumentalizada pelo país e que se levantou a hipótese de que o Brasil assumisse um mandato internacional na Armênia após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Seria uma ação de caráter humanitário "para angariar prestígio junto aos EUA e às potências europeias", afirma.
Ozan Kose/AFP | ||
Armênios colocam cravos em homenagem às vítimas do genocídio, ocorrido em 1915 |
Havia planos de que a questão armênia fosse solucionada por meio de um mandato na região, como o que foi feito no Oriente Médio. Os EUA recusaram o papel por voto do Congresso.
A comunidade armênia no Brasil pressionou as autoridades para que o país assumisse essa responsabilidade e reconhecesse a independência da República da Armênia proclamada em 1918.
"Isso não chegou a sair do papel, mas houve discussão nos bastidores do Ministério das Relações Exteriores e principalmente na imprensa", diz Loureiro à Folha.
Os planos não foram adiante, pois a Armênia se integrou ao bloco soviético em 1920, ao qual pertenceu até 1991.
Um dos protagonistas dessa história, segundo o pesquisador, foi o diplomata armênio Etienne Brasil. Loureiro baseia seus estudos em documentos e relatos da imprensa publicados à época.
Segundo ele, os boatos de um mandato brasileiro circularam no país e no exterior fomentados pelo diplomata.
Etienne e armênios radicados no Rio pressionavam as autoridades brasileiras "explorando a imagem de um povo cristão oprimido por muçulmanos", afirma Loureiro.
Durante a investigação, ele viajou à Armênia e encontrou correspondências de Etienne com políticos e intelectuais.
Há também registros de uma troca de mensagens entre o Brasil e a Liga das Nações sobre um possível auxílio brasileiro ao fim dos atritos entre turcos e armênios.
Em pesquisa na Turquia, Loureiro identificou o diplomata pelo sobrenome de batismo, Iknadossian."Ele usava uma vasta rede de contatos", diz. Etienne buscava influenciar políticos como Rui Barbosa e Epitácio Pessoa.
Apesar do histórico brasileiro, o pesquisador diz não ver interesse estratégico do país em reconhecer o genocídio armênio e, assim, assumir o que é diplomaticamente visto como um gesto contra a Turquia. Hoje, o país é um ator estratégico no Oriente Médio e membro da Otan (aliança militar do Ocidente).
O historiador uruguaio Vartan Matiossian, especialista na diáspora armênia na América do Sul, disse ter conhecimento dos rumores de que o Brasil pudesse assumir esse mandato. Ele diz, também, que se imaginava um papel similar à Argentina.
"Etienne fez um lobby extenso, particularmente no Brasil e na Argentina, sobre diversos assuntos que podiam beneficiar a incipiente República da Armênia", diz.
Richard Hovannisian, professor da Universidade da Califórnia, afirma por sua vez que o Brasil "foi um dos únicos países que responderam de maneira positiva" aos pedidos da Liga das Nações por auxílio na resolução do conflito entre turcos e armênios.
DEBATE
Um século após o massacre, armênios e turcos disputam ainda hoje os detalhes e circunstâncias do evento histórico. A Armênia afirma que 1,5 milhão de pessoas morreram durante esse genocídio.
A Turquia nega que tenha havido uma política deliberada para exterminar essa população. Segundo o governo turco, entre 300 mil e 400 mil teriam morrido no contexto da Primeira Guerra Mundial, quando armênios apoiaram os russos, inimigos do então Império Otomano.
Há também um debate internacional entre acadêmicos, apesar de a maior parte deles concordar que houve um plano turco para massacrar a população armênia.