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    Cidade síria arrasada pela guerra se esforça para viver normalmente

    DECLAN WALSH
    DO "NEW YORK TIMES", EM ALEPPO (SÍRIA)

    03/05/2016 11h00

    Zahra e sua família ocupam um apartamento antigamente tido como de alto padrão na extremidade da velha cidadela de Aleppo; hoje o lugar está de frente para as linhas rebeldes. Lonas de plástico cobrem suas janelas altas, para impedir atiradores de enxergar no apartamento. Disparos de morteiros ecoam à distância.

    Zahra, que tem 25 anos e só nos deu um nome, alterna entre duas fotos em seu celular. A primeira mostra seu marido, soldado do Exército sírio e pai de seu filho que ainda não nasceu. "Está com sete meses", ela disse, colocando a mão sobre seu ventre.

    A segunda foto mostra seu marido estatelado no chão, com sangue escorrendo do nariz. Dois outros soldados estão caídos ao seu lado. Ele morreu duas semanas atrás.

    "Que os homens que fizeram isso também morram", falou Zahra, com raiva.

    Quatro anos de guerra endureceram corações em Aleppo, cidade dividida e, na última semana, palco de combates implacáveis.

    Uma trégua frágil mediada pelos Estados Unidos e a Rússia caiu por terra na Síria, levando à pior violência em meses. Caças russos trovejam no céu, esmagando alvos em áreas controladas pelos rebeldes. Estes disparam ondas seguidas de obuses e mísseis improvisados que caem sobre bairros densamente povoados. A guerra acirrou tensões sectárias e virou um campo de batalha de interesses regionais e globais "terceirizados".

    Os mortos são em sua maioria civis —pelo menos 202 na última semana, dos quais dois terços em áreas sob controle rebelde no leste da cidade e o restante no lado oeste, controlado pelo governo, segundo grupos que rastreiam baixas.

    O alto comissário das Nações Unidas para os direitos humanos, Zeid Ra'ad al-Hussein, disse na sexta-feira (29) que a violência revela "um descaso monstruoso com a vida de civis".

    TERRA DIVIDIDA

    Uma das cidades habitadas mais antigas do mundo, Aleppo é conhecida há séculos como a encruzilhada de impérios, com influências otomanas, armênias, judaicas e francesas. Hoje a única via de acesso à cidade, pelo lado controlado pelo governo, é uma estrada solitária que passa por território hostil —uma via asfaltada irregular pontilhada por povoados abandonados e postos de controle governamentais isolados.

    Viajei com meu tradutor e um "cuidador" do governo sírio. O tráfego avançava em ritmo ágil: rebeldes sírios controlavam território a leste da estrada e militantes do Estado Islâmico, a oeste.

    Nossa primeira visão de Aleppo foi dos bairros destruídos do sul da cidade, um cenário de devastação que já virou uma imagem familiar do conflito sírio.

    Como muitas zonas de guerra, outras partes da cidade ostentavam movimento e uma aparência de normalidade. Policiais de trânsito orientavam os veículos, crianças saíam das escolas dando risada, e as pessoas enchiam as lojas de alimentos e perfumes artesanais. As pessoas pareciam estranhamente imunes ao estrondo de explosões que forma um pano de fundo mortífero em seu cotidiano.

    Mas essa atitude de indiferença não passa de uma espécie de roleta russa de pessoas que já estão fartas de conviver com a guerra. A morte, sob a forma de foguetes ou granadas, pode cair do céu em qualquer parte da cidade a qualquer momento. Em nosso primeiro jantar, em um restaurante elegante, fomos sacudidos pelo som de um foguete que acabava de ser disparado, aparentemente de um parque nas proximidades. O motor do foguete ressoou por segundos antes de ele ser lançado.

    O grande bazar medieval de Aleppo, considerado como um dos mais belos do mundo árabe, além de ser Patrimônio Mundial da Unesco, hoje está devastado. Em uma rua deserta, uma mulher de uniforme militar estava sentada em um bunker, gabando-se de que, no passado, cuidava dos tigres do zoológico de Aleppo. Conhecida por seu codinome Rose Abu Jaffer, a mulher mostrou fotos em que abraçava um leão, segurava uma jiboia em volta do pescoço, outra em que estava em pé ao lado de um urso e uma que a mostrava deixando um filhote de tigre apertar duas patas contra sua cabeça.

    "Essa é Sweetie", ela disse, apontando para o filhote de tigre. "Minha bebê."

    Sua carreira de nove anos como cuidadora de animais no zoológico acabou quando rebeldes ocuparam o zoo, quatro anos atrás, levando-a a entrar para a luta. Hoje ela é combatente da linha de frente.

    Rose disse que a posição rebelde mais próxima estava a 30 metros de distância. A situação era de calma, mas isso dificilmente iria durar. "Eles só ousam sair para fora à noite", explicou. "São como morcegos covardes."

    Uma granada caiu em um edifício próximo, com um estrondo ensurdecedor. Um veículo desceu a rua em alta velocidade, conduzido por outro soldado. Rose não se abalou, mas aconselhou que eu e meu tradutor nos afastássemos.

    GUERRA

    Apesar de ter começado como protesto contra o governo do ditador Bashar al-Assad, cuja família governa a Síria há 46 anos, a revolta no país alimentou tensões sectárias e diferenças históricas seculares. A maior parte da população armênia da cidade, conhecida por seus ourives, fugiu para a Europa ou o Canadá. Muitos dos que restaram são defensores ferrenhos de Assad, que eles enxergam como sua única esperança para resistir aos combatentes islâmicos, que jamais os deixariam viver em paz.

    O padre ortodoxo grego Iskander Assad vive em Maidan, um bairro da linha de frente que hoje está semiabandonado. Uma granada atingira sua casa um dia antes, abrindo um buraco no telhado. Ele contou que sua mulher passara a noite chorando. Mas não estava interessado em comiseração.

    "Dizer 'sinto muito' não adianta nada", disse o padre. "Precisamos de uma solução. 'Sinto muito' não resolve nada."

    Ele nos conduziu por cinco lances de escadas até seu apartamento no último andar. "O cessar-fogo foi um equívoco", falou, aludindo à trégua que acabou e olhando para uma sala cheia de poeira e escombros de alvenaria.

    "De que adiantou para nós? Os terroristas agora vieram em grupos maiores, com armas mais sofisticadas. Eles são mercenários. A trégua lhes deu tempo para se reagruparem. E agora quem está sofrendo com isso somos nós, não eles."

    HOSPITAL

    Na longa guerra da Síria, o sofrimento não é monopólio de nenhum dos lados.

    Assad enfrenta novas acusações de crimes de guerra, depois de o hospital de Al Quds, na parte de Aleppo sob controle dos rebeldes, ter sido atingido por ataques aéreos na noite de quarta-feira (27).

    Na sexta (29), 55 corpos já teriam sido retirados dos escombros, incluindo 29 crianças e mulheres, algumas das quais estavam em trabalho de parto quando o ataque aconteceu, segundo uma organização humanitária. A organização Médicos Sem Fronteiras, que dava apoio ao hospital, denunciou o bombardeio como "revoltante".

    Os moradores das áreas sob controle do governo aprenderam a temer os "canhões do inferno" —um tipo de foguete improvisado a partir de cilindros modificados de gás propano, carregados de explosivos e objetos metálicos, que está sendo usado por alguns grupos insurgentes, incluindo os que recebem assistência dos EUA.

    Os dois lados já foram devastados pelos bombardeios, embora apenas o governo disponha de caças-bombardeiros e helicópteros, que já reduziram grandes trechos de território rebelde a escombros.

    O desrespeito pela vida de civis é universal. Na quinta (28), depois do ataque ao hospital, foguetes dos rebeldes atingiram virtualmente todos os distritos da parte de Aleppo sob controle do governo, num ataque acirrado que deixou dezenas de mortos. Táxis e ambulâncias chegavam às pressas ao hospital de Al Razi, na cidade, enquanto parentes desesperados levavam pessoas ensanguentadas e sujas, muitas delas crianças, ao setor de emergências.

    No dia seguinte, forças do governo bombardearam três instalações médicas na zona leste da cidade.

    Alguns moradores do lado controlado pelo governo acusam os EUA e seus aliados de indignação seletiva e de fazer vista grossa para os excessos cometidos por seus aliados, como o Qatar, a Arábia Saudita e a Turquia.

    "O Conselho de Segurança adota dois pesos e duas medidas", disse o pastor presbiteriano Ibrahim Nsier. "Ele não enxerga as nossas vítimas. Pede democracia na Síria e não enxerga a ditadura na Arábia Saudita e no Qatar."

    Ninguém tem certeza quantos restam dos mais de 2 milhões de habitantes que a cidade tinha antes da guerra. Muitos já fugiram para a Europa, o Líbano e outras partes da Síria. Os que continuaram em Aleppo vivem com dificuldade com sistemas improvisados de fornecimento de água e eletricidade. Qualquer escalada dos combates encerra o potencial de um desastre humanitário, avisou Valter Gros, diretor do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Aleppo.

    "A situação está muito pesada", ele disse. "Todos sentem isso, de maneiras diferentes."

    ANESTESIADOS

    Original da Bósnia, Gros disse que entende o semblante aparentemente calmo dos moradores de Aleppo quando saem para a rua.

    "É bizarro ouvir morteiros disparando à distância quando há crianças jogando basquete do lado de fora da janela de minha sala de trabalho", ele disse. "Mas as pessoas tentam ter uma vida normal. Quando você tem que suportar sofrimento demais, isso o torna insensível a coisas que as pessoas no Ocidente encarariam com horror. As pessoas se acostumam, e é isso que é assustador."

    Nossa entrevista terminou quando uma granada caiu numa rua ao lado, sacudindo as janelas do escritório de Gros. Ele nos levou, com os membros de sua equipe, para uma área segura no centro do edifício, antiga sede do consulado da Turquia, onde aguardamos por dez minutos. Mas, assim que nos aventuramos a sair, houve nova explosão.

    Alguns moradores de Aleppo estão determinados a levar a vida adiante. Horas mais tarde, cerca de cem rapazes estavam reunidos em um restaurante para uma ruidosa festa de casamento. O sol do fim da tarde passava pelas paredes de vidro, e os convidados, muitos de terno, saboreavam as frutas expostas em travessas, fumavam narguilés e dançavam a dança folclórica tradicional "dabke". Graças à música, não conseguiam ouvir o estrondo ocasional de explosões do lado de fora.

    "Há a guerra e há a vida", falou o estudante de administração Omar Hretani, 21, padrinho do noivo. "Nós neste país temos dois corações, um para a tristeza e outro para a alegria. Tudo tem sua própria história."

    Em reconhecimento aos laços comerciais duradouros de Aleppo com a Rússia, o restaurante é chamado Matryoshka, ou matriosca, nome da boneca típica russa. Depois de quatro anos de guerra, os moradores da cidade aprenderam a levar a vida adiante, disse o gerente, Nadim Bsata, 27. Ele próprio tinha ficado noivo na noite anterior.

    Mas uma hora mais tarde um fato novo veio lembrar a todos dos perigos do governo intransigente de Bashar AL-Assad. Um pelotão de agentes da inteligência militar, vestidos de preto, parou diante do restaurante. Os agentes agarraram Bsata pela camisa e o repreenderam por deixar seus fregueses cantar e dançar em um dia marcado por tanta violência.

    A conversa passou para uma mesa no terraço, onde Bsata assegurou ao oficial comandante de seu apoio pleno aos soldados. "Não quero que os terroristas destruam a cidade", ele disse. "Vocês precisam matá-los e nos deixar viver."

    Aparentemente satisfeito com a resposta, o comandante beijou Bsata nas duas faces e foi embora. No andar de cima, a festa de casamento foi retomada e varou a noite, ao mesmo tempo em que as bombas continuavam a cair nas ruas, algumas delas muito próximas do restaurante.

    Tradução de Clara Allain

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