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    Linchamentos crescem na Venezuela com deterioração da segurança

    HANNAH DREIER
    DA ASSOCIATED PRESS
    EM CARACAS (VENEZUELA)

    23/05/2016 07h00

    Inicialmente a multidão não sabia o que Roberto Bernal havia feito, mas ele estava correndo. Foi o suficiente.

    Dezenas de homens parados na calçada ao lado de um supermercado chutaram e socaram Bernal, 42, deixando-o ensanguentado e desmaiado. Quando um homem corcunda e de cabelos brancos lhes disse que tinha sido assaltado, eles revistaram os bolsos de Bernal e encontraram dinheiro em valor equivalente a US$ 5.

    Derramaram gasolina sobre a cabeça e o peito de Bernal e acenderam um isqueiro. E recuaram alguns passos enquanto ele ardia em chamas.

    "A gente quis dar uma lição a esse homem", disse Eduardo Mijares, 29. "Estamos fartos de ser assaltados sempre que saímos para a rua, enquanto a polícia não faz nada."

    PAÍS EM DECADÊNCIA

    A violência justiceira virou corriqueira na Venezuela, país de 30 milhões de habitantes e repleto de criminalidade que, no passado, era um dos mais ricos e seguros da América Latina. Os ataques de vingança revelam quanto o país decaiu, com blecautes diários e escassez que geram filas que dão voltas a quarteirões diante de supermercados.

    A queda dos preços do petróleo trouxe à tona anos de má administração nacional; a economia entrou em colapso e, com ela, a tessitura social. Hoje a Venezuela tem um dos maiores índices de homicídio do mundo. É difícil encontrar uma pessoa que nunca tenha sido assaltada.

    "A vida aqui virou um sofrimento. As pessoas vivem estressadas, estão sempre com medo, e os linchamentos funcionam como catarse coletiva", disse Roberto Briceno-Leon, diretor do Observatório da Violência. "As pessoas não podem fazer nada quanto às filas ou à inflação, mas por um instante, pelo menos, a turba sente que está fazendo uma diferença."

    Relatos sobre espancamentos cometidos em grupo hoje aparecem quase todas as semanas na mídia local. A promotoria pública abriu 74 inquéritos sobre assassinatos justiceiros nos primeiros quatro meses deste ano, contra apenas dois no ano passado inteiro. E, segundo o Observatório da Violência venezuelano, a maioria da população é a favor dos linchamentos, que considera uma forma de autoproteção.

    TRAJETÓRIA NA POBREZA

    Roberto Bernal passou toda sua vida num labirinto de escadarias estreitas e barracos feitos de blocos de concreto erguidos nos morros de Caracas.

    As favelas que se elevam sobre a capital estão sem água há meses. Para conseguir comida, seus moradores começaram a saquear caminhões que passam pela área. Bernal estava desempregado e confidenciou a seus irmãos recentemente que ele e sua mulher estavam tendo dificuldade em alimentar seus três filhos.

    Homem tranquilo e com físico musculoso desde o tempo em que serviu o Exército, Bernal passou os dias antes de sua morte na cozinha de sua irmã, preparando pratos para a Páscoa e doce de maracujá. Seus seis irmãos o enxergavam como o irmão que tinha dado certo na vida, tendo estudado culinária e se tornado chef profissional.

    Muitas pessoas que crescem nas favelas assimilam elementos da cultura de rua, usando tatuagens e bijuterias, mas não era o caso de Bernal. "Ele era tão certinho que nem apelido tinha", comentou sua tia Teresa Bernal.

    Na manhã do linchamento, Bernal deixou o barraco da família antes do dia raiar, indo para uma avenida movimentada perto do centro da cidade. Ele tinha dito à mulher que estava indo para um emprego novo em um restaurante. Mas parou perto de um banco ao lado de um outdoor que anunciava entregas em domicílio de artigos escassos vindos de Miami.

    Um homem na casa dos 70 anos saiu do banco enfiando um maço de notas no valor total de US$ 5 em um boné de beisebol, que ele então escondeu dentro do casaco.

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    Crise Venezuela

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    Era muito dinheiro para Bernal. O suficiente para alimentar sua família por uma semana. Ou para comprar uma mesa de plástico, ou então um uniforme escolar para sua filha, que as outras crianças andavam chamando de "fedida".

    O homem assaltado contou a investigadores mais tarde que Bernal agarrou o dinheiro e começou a correr em direção a uma fila de táxis, onde dezenas de motos estavam estacionadas. O homem correu atrás dele, gritando "ladrão!". Pessoas que observavam a cena de longe imaginaram que eles estivessem correndo para entrar na fila para comprar alimentos.

    Enquanto isso, os motoqueiros estavam sentados sobre uma mureta em frente ao supermercado, mexendo com seus celulares e tomando café em copinhos plásticos. Eles olharam os dois homens correndo em sua direção.

    Quando o espancamento começou, os donos dos carrinhos de doces e cachorro-quente na calçada se afastaram, não querendo ver o que ia acontecer. Outras pessoas ficaram ali para assistir e aplaudir. Quando o cheiro de carne queimando subiu no ar, a multidão aos gritos silenciou.

    "HOMENS TINHAM VIRADO DEMÔNIOS"

    Bernal teria morrido ali mesmo, não fosse por Alejandro Delgado. O pastor de jovens chegou para trabalhar como motoqueiro, seu emprego de meio período, justamente quando o frenesi chegava ao auge. Horrorizado, arrancou seu casaco preto e o usou para apagar as chamas.

    "Esses caras com quem eu trabalho todo dia tinham virado demônios", disse. "Eu ouvia a pele do homem rachando e pipocando. Quando apaguei o fogo, jogaram garrafas na minha cabeça."

    Bernal foi levado embora de ambulância. Um vídeo do linchamento se alastrou pelas mídias sociais, mas atraiu poucos comentários de condenação. Mesmo o enfermeiro do setor de traumatologia que atendeu Bernal achou que uma espécie de justiça tinha sido feita.

    "Se as pessoas o agarraram e lincharam, é porque ele era bandido", disse o enfermeiro Juan Perez. Ele próprio já perdeu a conta de quantas vezes já foi assaltado.

    Bernal não conseguia abrir os olhos queimados, e sua traqueia estava tão escaldada que ele só conseguia falar sussurrando. Ele disse à sua mulher que o idoso o confundiu com o assaltante real e os acusadores não lhe deram tempo de se explicar. Morreu dois dias depois.

    Um mês após a morte de Bernal o promotor público Regino Cova indiciou Maickol Jaimez, ex-estudante de direito de 23 anos, por ter jogado a gasolina sobre a vítima. Ele disse que à família que os outros homens vistos no vídeo sairiam impunes.

    Sobrecarregados com um índice de homicídios comparável ao de uma zona de guerra, a promotoria não tem condições de correr atrás de pessoas apenas por terem dado alguns chutes, ele explicou.

    Jaimez vivia na mesma favela que Bernal e trabalhava ao lado do supermercado, cuidando das motos estacionadas pelas pessoas que faziam compras. É um dos muitos tipos de trabalho relacionados à segurança que proliferam em meio à violência.

    Como Bernal, ele nunca antes tivera problemas com a lei. Mas seus colegas disseram que ele andava revoltado porque algumas pessoas estavam roubando capacetes e baterias de motos, e ele tinha sido obrigado a pagar.

    TROFÉU DE SANGUE

    Uma placa dos mototáxis acima da calçada rachada onde Bernal foi queimado vivo ainda está manchada com seu sangue. Os homens aqui dizem que não vão lavar —é o troféu que eles guardam da ocasião em que enfrentaram um dos muitos bandidos que espalham medo e tensão na cidade.

    "Podem tentar fazer a gente ficar mal na fita", disse o taxista Francisco Agro, 29, que participou do linchamento. "Mas a verdade é que os tribunais e a polícia não funcionam. Não é assim que deveria ser, mas fomos nós que tivemos que proteger um velhinho de um assaltante."

    Alexandra Ulmer - 21.ago.2015/Reuters
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    Desde o assassinato, a mulher e os filhos de Bernal dormem juntos, com medo de que alguém venha atrás deles também. Seu filho de 11 anos parou de ir à escola e está passando mais tempo nas vielas sujas da favela com os rapazes mais velhos, usando tatuagens falsas em seus braços finos.

    A família ainda não acredita que Bernal tenha assaltado ninguém, mas concorda com os assassinos dele em um ponto: não existe justiça no país.

    "É bom todo o mundo ter medo, sim", disse Alfredo Cisneros, sobrinho do homem linchado. "As pessoas precisam saber que não existe mais lei aqui. Ninguém está em segurança."

    TRADUÇÃO DE CLARA ALLAIN

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