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    Desesperado e forçado a recuar, Boko Haram espalha sofrimento no Níger

    KIERAN GUILBERT
    DA REUTERS, EM DIFFA (NÍGER)

    24/05/2016 17h00

    No ano passado, quando o Boko Haram atacou a cidade onde vivia Falmaya Baba Gama, 30, no nordeste da Nigéria, executando 12 homens e incendiando o mercado público, milhares de pessoas fugiram e atravessaram a fronteira do Níger. Em meio ao caos, algumas tiveram que deixar seus filhos para trás.

    Gama e seus sete filhos chegaram em segurança à região de Diffa, mas hoje, quase um ano mais tarde, estão passando fome, têm medo de mais violência e ainda estão assombrados pela violência que testemunharam.

    Boureima Hama/AFP
    Criança brinca no campo de refugiados do Boko Haram em Assaga, próximo a Diffa, no Níger
    Criança brinca no campo de refugiados do Boko Haram em Assaga, próximo a Diffa, no Níger

    "Até hoje as crianças têm pesadelos com o Boko Haram e choram", disse Gama diante de um barraco com telhado de sapé, fixado com paus e lonas plásticas, em Assaga. Trata-se de um acampamento improvisado para pessoas desalojadas, a poucos quilômetros da fronteira do Níger com a Nigéria.

    DESALOJADOS

    Gama é uma entre cerca de 240 mil pessoas desalojadas que estão vivendo em Diffa, uma grande área de deserto no sudeste do Níger que é pouco povoada, com vilarejos isolados e vegetação esparsa.

    Muitos dos desalojados estão vivendo em barracos improvisados às margens da principal rodovia do país. A violência do Boko Haram os expulsou de suas casas no nordeste da Nigéria e sudeste do Níger.

    Em sua campanha para construir um califado islâmico, que já dura sete anos, o grupo militante já matou mais de 15 mil pessoas e desalojou 2 milhões de outras nos Camarões, Chade, Níger e Nigéria.

    Boureima Hama/AFP
    Carregamento humanitário passa pelo campo de refugiados em Assaga, no Níger
    Carregamento humanitário passa pelo campo de refugiados em Assaga, no Níger

    Ofensivas militares lançadas por uma força-tarefa regional e por tropas camaronenses e nigerianas forçaram o Boko Haram a recuar para o nordeste da Nigéria, levando os militantes a se dispersar e intensificar ataques do outro lado da fronteira, em Diffa.

    A violência traumatizou muitos refugiados nigerianos e desalojou nigerinos residentes em Diffa, deixando-os com água e alimentos escassos, poucas oportunidades de trabalhar ou fazer comércio e vulneráveis a doenças e desnutrição, segundo agências humanitárias.

    CATÁSTROFE HUMANITÁRIA

    O presidente do Níger, Mahamadou Issoufou, disse que o Boko Haram semeou enorme confusão em Diffa, destruindo escolas e clínicas de saúde, e provocou a paralização econômica da região.

    O Níger, um dos países menos desenvolvidos do mundo, foi prejudicado também pela queda dos preços globais do petróleo e pelo fluxo crescente de migrantes que passam por seu território extenso, atravessando o deserto do Saara a caminho da costa do Mediterrâneo.

    Boureima Hama/AFP
    Crianças transportam água no campo de refugiados em Assaga, no Niger
    Crianças transportam água no campo de refugiados em Assaga, no Niger

    "Enfrentamos uma situação humanitária catastrófica", disse Issoufou à Thomson Reuters Foundation na capital nigerina, Niamey, enquanto se preparava para assistir a uma apresentação sobre a bacia do lago Chade na Cúpula Humanitária Mundial que acontece esta semana em Istambul.

    NADA A FAZER

    Em Assaga, meninos adolescentes passam o tempo à sombra de árvores, brincando com seus telefones, enquanto seus pais e avôs caminham pela rodovia leste-oeste nigerina, trocando histórias e fofocas.

    A estrada divide o local entre Assaga Níger e Assaga Nigéria, mas não existem grandes tensões entre as duas comunidades, disse o refugiado nigeriano Kyani Bukai, pai de seis filhos.

    Assaga é um dos 135 campos informais em Diffa, região que abriga 160 mil nigerinos desalojados e 80 mil refugiados da Nigéria.

    "Somos o mesmo povo, nós, nossos tios, nossos avôs -estamos todos juntos aqui", disse Bukai, ex-diretor de escola.

    ACESSO FÁCIL

    Graças à estrada que atravessa Assaga, as agências humanitárias têm acesso fácil ao campo, permitindo que levem ajuda alimentar e construam clínicas, escolas e instalações sanitárias.

    Mas, depois de um aumento recente da violência em Diffa, muitas pessoas temem que a estrada também converta o campo em alvo fácil do Boko Haram.

    Ocorreram cerca de 30 ataques do Boko Haram na região este ano, metade deles desde abril, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha).

    Os militantes lançaram invasões, ataques suicidas e saquearam um centro de saúde, segundo várias organizações humanitárias. No mês passado o governo estendeu por mais três meses o estado de emergência em Diffa, declarado inicialmente em fevereiro de 2015.

    "Quando carros passam por aqui, as pessoas saem correndo. Elas têm medo de ataques suicidas", disse o agricultor nigerino Mustapha, que abandonou seu povoado em Diffa e buscou refúgio em Assaga quando soube que o Boko Haram se aproximava da fronteira.

    Muitos dos mercados em Diffa e vários na Nigéria foram destruídos pelo Boko Haram ou fechados por insegurança, deixando os jovens de Assaga com poucas oportunidades de trabalho ou comércio.

    Alguns homens disseram que estão cortando capim ou madeira, na esperança de conseguir vendê-los para dar de comer às suas famílias.
    "Não há mercado aqui, não há negócio nenhum. Não temos nada a fazer", disse Adam Alhagi Bukai, 25 anos, que era lavrador na Nigéria.

    MEDO DO FUTURO

    A situação de segurança angustia muitos dos desalojados, mas a falta de assistência alimentar é a preocupação mais urgente antes da estação de escassez que se aproxima e do Ramadã, o mês sagrado de jejum.

    "Quando chegamos a Assaga no ano passado, ganhamos milho, milhete, óleo e tomates", comentou Ataha Balai, que tem 18 anos e dois filhos. "Mas há cinco meses não recebemos comida nenhuma."

    Cerca de 450 mil pessoas em Diffa, mais de metade da população da região, estão passando fome. E um déficit de financiamento humanitário está prejudicando os esforços para levar ajuda alimentar àqueles que mais precisam dela, segundo o Programa Mundial de Alimentação (PMA) das Nações Unidas.

    "É preocupante, especialmente quando se considera o risco de mais pessoas serem desalojadas nos próximos meses pela insegurança", disse Fodé Ndiaye, coordenador humanitário das Nações Unidas para o Níger.
    De acordo com a organização Médicos Sem Fronteiras, pode haver bolsões de desalojados em Diffa ainda não localizados.

    DESAFIOS

    O diretor de assistência humanitária da ONU, Stephen O'Brien, disse que Diffa representa um desafio humanitário excepcional. Uma combinação de vários fatores pode levar mais pessoas a ficarem desalojadas e pode dificultar a entrega de assistência.

    "Essas comunidades vulneráveis enfrentam desafios ligados a fatores climáticos, como a desertificação, o crescimento demográfico acelerado, a miséria, a falta de alimentos e, é claro, a violência do Boko Haram."

    O'Brien vai discursar na Cúpula Humanitária Mundial, onde espera conscientizar os participantes e levantar recursos para o plano de assistência da ONU ao Níger, que até agora recebeu apenas um quarto de sua meta de US$316 milhões para 2016.

    A um mundo de distância de diplomatas e dignitários, meninas no lado nigeriano do campo de Assaga riam enquanto brincavam numa bomba d'água como se fosse uma gangorra, cantando e brincando enquanto enchiam latas amarelas de água.

    Para os moradores mais velhos de Assaga, refletindo sobre o futuro de suas famílias, essa alegria é incompreensível.

    "Não sabemos quando vamos poder voltar para casa", disse Bukai, 30 anos, sufocando lágrimas. "Só quando as coisas se acertarem, a situação se normalizar e não houver mais problemas. Ainda há muitos homens do Boko Haram espalhados. Não podemos voltar."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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