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    Obama em Hiroshima pode distanciar Japão de pecados da guerra, teme Ásia

    FOSTER KLUG
    DA ASSOCIATED PRESS
    EM HANÓI, VIETNÃ

    26/05/2016 07h00

    Hiroshima

    Ataque a Hiroshima completou 70 anos no ano passado

    Ao visitar Hiroshima, Barack Obama cai de paraquedas em uma disputa aparentemente interminável sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) entre importantes aliados e parceiros comerciais dos EUA.

    No cabo de guerra que dura décadas entre Tóquio e suas vizinhas China e Coreia do Sul, o presidente americano poderá acabar perdendo.

    Muitos na China e na Coreia do Sul acham que o Japão teve o que merecia quando as bombas atômicas americanas explodiram sobre Hiroshima em 6 de agosto de 1945 e Nagasaki três dias depois.

    Eles ressentem o que consideram o foco do Japão nas vítimas das bombas, e não nos milhões de civis mortos, estuprados e escravizados pelos soldados japoneses.

    Eles temem que a primeira visita do presidente dos EUA a Hiroshima permita que os japoneses conservadores, incluindo o primeiro-ministro Shinzo Abe, afastem ainda mais o país de seus pecados de guerra.

    Apesar dessa preocupação, porém, há também um crescente desejo de trabalhar com o Japão, a terceira economia do mundo, em questões de diplomacia, segurança, turismo, cultura e comércio. Isto é especialmente válido para a Coreia do Sul, uma democracia aliada dos EUA.

    Abaixo, veja uma visão de algumas questões que estarão sob a superfície enquanto Coreia do Sul e China observam atentamente a visita de Obama.

    QUEM É A VÍTIMA?

    É complicado: muitos no nordeste asiático reivindicam o papel.

    A sensação de vítima do Japão deriva dos mais de 200 mil mortos em Hiroshima e Nagasaki e do enorme número de civis mortos em bombardeios aéreos dos EUA a grandes cidades em 1945; 100 mil morreram só no bombardeio incendiário de Tóquio.

    Mas o Japão não só instigou a guerra no Pacífico com seu ataque a Pearl Harbor, em 1941; antes disso, décadas de agressão colonial e em guerras deixaram centenas de milhares de vítimas na China e na Coreia do Sul.

    Os mortos pelas bombas atômicas incluem cerca de 20 mil coreanos, muitos dos quais foram levados ao Japão para trabalho escravo.

    "Nós (sul-coreanos) achamos que fomos as verdadeiras vítimas. Para a China, seu orgulho foi muito ferido porque eles acham que estavam no comando antes de serem fortemente derrotados pelo Japão", disse Lee Myon-woo, um analista do Instituto Sejong na Coreia do Sul.

    "Os japoneses acham que também sofreram muito por causa do Ocidente. Cada país tem uma vítima mentalmente... e não é algo que possamos superar com facilidade."

    A Casa Branca diz que Obama não vai a Hiroshima para pedir desculpas, mas o mero fato de estar lá dará essa impressão a muitas pessoas.

    Atribuir demasiada importância à bomba, afirmam os críticos nos países vizinhos do Japão, distrai da atual expansão militar de Tóquio e dos esforços aguerridos de Abe para distanciar o Japão de seu passado de guerra.

    Alguns também temem que indique uma preferência de Washington por Tóquio, mais que por Seul.

    "Os EUA e o Japão ignoram um pouco nosso país", disse Park Jeong-mi, 50, de Seul. "Estou insatisfeito com o fato de que o presidente americano visitará o Japão e também irá à área específica, Hiroshima, quando o Japão ainda não pediu desculpas oficialmente a nosso país" pelas atrocidades cometidas na guerra.

    Líderes japoneses pediram desculpas várias vezes no passado, mas nos últimos anos Abe é visto pela Coreia do Sul, a China e outros como tentando recuar nas desculpas e reconhecimentos anteriores das atrocidades.

    O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Hong Lei, disse recentemente que o Japão, ao convidar líderes a Hiroshima, deveria refletir que "nunca mais trilhará o caminho do militarismo, pois este já trouxe um sofrimento indescritível à sua população e à população da Ásia e de todo o mundo".

    Yukio Okamoto, um ex-diplomata japonês, disse que a população japonesa simplesmente quer que Obama homenageie os mortos. Ele disse que "será visto pela população japonesa como os EUA enfrentando o incidente olho no olho pela primeira vez".

    O QUE ESTÁ EM JOGO?

    A Casa Branca quer que a visita seja voltada para o futuro, e não o passado.

    "Meu objetivo não é simplesmente rever o passado, mas afirmar que pessoas inocentes morrem em uma guerra, em todos os lados, e que devemos fazer o possível para tentar promover a paz e o diálogo em todo o mundo, que devemos continuar lutando por um mundo sem armas nucleares", disse Obama à emissora pública japonesa NHK em uma entrevista divulgada no domingo (22).

    O Japão e seus vizinhos, entretanto, poderão acabar interpretando a viagem de modo diferente. Isto encerra riscos para a cooperação florescente entre China, Japão e Coreia do Sul.

    Disputas históricas raramente prejudicaram os laços econômicos e culturais entre os três vizinhos, mas perturbaram iniciativas regionais de segurança.

    Seul, por exemplo, hesitou em compartilhar com Tóquio informações de inteligência relacionadas à Coreia do Norte por temer uma reação interna à cooperação com os militares japoneses.

    Tanto Pequim quanto Seul foram ocasionalmente acusados de usar o sentimento antijaponês para incitar protestos nacionalistas com o fim de promover agendas domésticas ou distrair a atenção de fracassos do governo.

    Os laços regionais melhoraram recentemente. A Coreia do Sul, o Japão e a China realizaram uma cúpula tríplice em Seul em novembro, e Seul e Tóquio forjaram um acordo importante, embora muito criticado e ainda não implementado, no final do ano passado, para indenizar as mulheres coreanas forçadas à escravidão sexual por militares japoneses.

    Esses sentimentos relativamente positivos, uma raridade no nordeste da Ásia, poderiam se dissipar se o Japão fosse visto na tentativa de usar a visita de Obama para minimizar sua agressão durante a guerra —ou se os sul-coreanos e os chineses pensassem que Obama está sendo indiferente a suas dolorosas experiências.

    "Obama dirá todas as palavras certas, mas a imagem dele lá vai incomodar a muitos (nos EUA, assim como na Ásia)", disse em um e-mail Ralph Cossa, presidente do grupo de pensadores Pacific Forum CSIS. "A essa altura, é um jogo perdido para Obama."

    ANDANDO NA CORDA BAMBA

    Obama tentará se concentrar em sua visão de um mundo sem armas nucleares enquanto evitará qualquer coisa que pinte o Japão exclusivamente como vítima.

    Mas há uma certa discussão sobre como ou se ele abordará o passado.

    A visita "se enquadrará totalmente em um discurso futurista, por exemplo, sobre a futura meta nuclear zero", disse Victor Cha, um especialista em Ásia na Universidade Georgetown.

    Corrida nuclear

    "Acho que há um desejo de Obama de sanar o passado, mas não acho que ele fará uma referência direta a isso."

    Outros discordam.

    Para tentar satisfazer o público nos EUA, no Japão e no resto do leste da Ásia, Obama vai criticar os atos do Japão anteriores à bomba-A e pedir um mundo livre de armas nucleares, mas não criticará o uso da bomba pelos EUA, segundo Charles Armstrong, especialista em Ásia na Universidade Columbia.

    Esse ato de equilíbrio poderá não ser suficiente.

    "Ele será criticado por americanos, coreanos e chineses por ser brando demais com o Japão", disse Armstrong, "e pelos japoneses por ser crítico demais."

    Alguns observadores esperam que a visita de Obama possa levar a algo que, segundo eles, é extremamente difícil para o Japão: um relato honesto de sua história de guerra.

    Eles querem visitas recíprocas de Abe a Nanquim, na China, por exemplo, para homenagear os mortos no massacre de 1937, ou a Pearl Harbor, que foi atacada há 75 anos, em dezembro.

    "A poderosa imagem de um presidente americano pronto para finalmente enfrentar atos de guerra brutais e questionáveis só pode ser realmente um sucesso se ele a usar para exigir ações semelhantes por parte dos japoneses em relação a seus vizinhos asiáticos", afirmaram recentemente os especialistas em Ásia Gi-Wook Shin e Daniel Sneider.

    Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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