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    'Rodovia das lágrimas' coleciona mortes de mulheres no Canadá

    DAN LEVIN
    DO 'NEW YORK TIMES', EM SMITHERS (COLÚMBIA BRITÂNICA)

    27/05/2016 11h12

    Numa manhã de primavera em 1990, menos de um ano depois de sua prima de 15 anos ter desaparecido, Delphine Nikal, 16, foi vista pela última vez saindo de carona de Smithers, uma cidade isolada no norte do Canadá.

    Ramona Wilson, 16, que fazia parte do time de beisebol de seu colégio, saiu de casa numa noite de sábado em junho de 1994 para ir a um baile a algumas cidades de distância. Ela nunca chegou ao baile. Seus restos mortais foram encontrados dez meses mais tarde, perto do aeroporto local.

    Tamara Chipman, 22, desapareceu em 2005, deixando um filho pequeno. "Ela ainda está desaparecida", disse sua tia, Gladys Radek. "Em setembro serão 11 anos desde que ela sumiu."

    Dezenas de meninas e mulheres canadenses, em sua maioria indígenas, desapareceram ou foram assassinadas perto da Rodovia 16, uma estrada isolada de asfalto que divide a Colúmbia Britânica ao meio e passa por florestas densas, cidades formadas em torno de serrarias e reservas indígenas pobres, até chegar ao oceano Pacífico. Tantas mulheres e meninas já desapareceram ou apareceram mortas em um trecho da estrada que os habitantes da região a conhecem como "rodovia das lágrimas".

    Ruth Fremson/The New York Times
     A billboard along Highway 16. The stretch of road is known as the Highway of Tears because dozens of women, mostly aboriginal, have been murdered or have disappeared in the area. Credit Ruth Fremson/The New York Times
    Outdoor alerta meninas de mortes na região e pede que evitem pedira carona em Smithers, no Canadá

    Uma unidade da Real Polícia Montada Canadense formada especialmente para investigar os desaparecimentos vinculou oficialmente 18 desses casos ocorridos entre 1969 e 2006 a esse trecho da rodovia e duas estradas ligadas a ela. Mais mulheres desapareceram desde então, e ativistas comunitários e parentes das desaparecidas acreditam que o total esteja mais próximo de 50. Quase todos os casos continuam sem solução.

    A "rodovia das lágrimas" e os desaparecimentos das mulheres indígenas viraram um escândalo político na Colúmbia Britânica. Mas esses casos formam apenas uma parte minúscula do total de mulheres indígenas assassinadas ou desaparecidas em todo o Canadá. A Real Polícia Montada Canadense contabilizou oficialmente cerca de 1.200 casos nas últimas três décadas, mas pesquisas da Associação de Mulheres Indígenas do Canadá sugere que o número total possa chegar a 4.000.

    INDÍGENAS

    Em dezembro, depois de seu predecessor conservador recusar-se a isso por anos, o primeiro-ministro Justin Trudeau anunciou a abertura de um longamente aguardado inquérito nacional sobre os desaparecimentos e assassinatos de mulheres indígenas.

    Previsto para custar 40 milhões de dólares canadenses (US$31 milhões), o inquérito se insere na promessa feita por Trudeau de renovar completamente a relação do Canadá com seus cidadãos indígenas. E ele chega em um momento crítico.

    As mulheres indígenas compõem cerca de 4% da população feminina total do Canadá, mas 16% das mulheres vítimas de homicídio são indígenas, revelam estatísticas governamentais.

    Carolyn Bennett, ministra dos Assuntos Indígenas e do Norte, passou meses percorrendo o país para fazer consultas com comunidades indígenas. Nessas reuniões, famílias e sobreviventes se queixaram de racismo e sexismo da polícia, que, segundo Bennett, tratam as mortes de mulheres indígenas como "inevitáveis, como se a vida dessas mulheres valesse menos".

    "Fica claro que a justiça vem sendo aplicada de modo injusto", ela disse.

    Uma razão para questionar a estimativa feita pela Real Polícia Montada Canadense, disse Bennett, é que em muitos casos a polícia imediatamente supôs que as mulheres tivessem morrido por suicídio, overdose de drogas ou acidentes, ignorando os protestos de seus familiares que desconfiavam de um crime. "Não houve investigação", ela disse, citando um caso recente. "A pasta do arquivo sobre o caso está vazia."

    PERIGO

    Cobrindo 720 quilômetros entre a cidade de Prince George e o porto de Prince Rupert, no Pacífico, a "rodovia das lágrimas" é ao mesmo tempo um microcosmo do doloroso legado indígena canadense e uma prova séria para Justin Trudeau, em seu esforço para reparar o relacionamento do país com sua população indígena.

    Ruth Fremson/The New York Times
     The sparsely populated landscape along the highway. Credit Ruth Fremson/The New York Times
    Vista da 'rodovia das lágrimas' mostra o isolamento da região

    Numa viagem recente pela rodovia, cenas de natureza belíssima eram pontilhadas por comunidades indígenas arcadas sob o peso do declínio econômico e da lembrança dolorosa de mulheres desaparecidas e assassinadas.

    Alguns quilômetros depois de Prince George, a rodovia passa entre florestas densas cortadas por estradas de madeireiros e placas ocasionais avisando sobre "travessias de alces". "Meninas, não peçam carona na 'rodovia das lágrimas', diz um grande outdoor amarelo erguido ao lado da estrada, mais ao norte. "Assassino à solta!"

    Enquanto uma águia voava ao alto, Brenda Wilson, 49, irmã de uma das vítimas e coordenadora da entidade Carrier Sekani Family Services na "rodovia das lágrimas", apontou para a parede de árvores sempre-vivas que se estende ao lado da estrada. "A floresta é densa aqui. Se você procura uma pessoa, é difícil encontrá-la", ela disse, citando os nomes de várias mulheres que continuam desaparecidas.

    Em dezembro o governo da província anunciou planos para aumentar a segurança ao longo da Rodovia 16, incluindo verbas para câmeras na rodovia e veículos para as comunidades indígenas. Mas pouca coisa mudou na rodovia, que ainda não tem iluminação nem qualquer meio de transporte público exceto um serviço de ônibus Greyhound infrequente e que não chega até as comunidades remotas.

    O perigo não impede pessoas que não têm alternativa de pedirem carona. No povoado de Burns Lake, a indígena desempregada Drucella Joseph, 25, embarcou num carro que passava pelo local com seu namorado, Corey Coombes.

    "Quando realmente preciso, algum amigo geralmente me leva. Mas, tirando esses momentos, a gente pede carona", ela disse ao motorista. Ela e Coombes vivem do auxílio de invalidez que ele recebe e de alimentos doados por bancos de alimentos. Nenhum dos dois tem celular. Coombes disse que, quando está viajando de carona, leva um cassetete ou chave de fenda para se proteger.

    Matilda Wilson, membro da nação indígena Gitxsan, uma das Primeiras Nações, contou que quando sua filha Ramona desapareceu, em 1994, a polícia se recusou a agir. "Eles nos deram um monte de desculpas, dizendo que ela poderia voltar no dia seguinte ou na semana seguinte", disse Wilson. "Não estavam com pressa nenhuma, não estavam nem um pouco preocupados. Então começamos a procurar por conta própria."

    Apesar de ter feito muitas buscas, Wilson, 65, mãe solteira de seis filhos, disse que não houve qualquer sinal de Ramona até sete meses depois de seu desaparecimento, quando ela recebeu um telefonema anônimo dizendo que o corpo da garota estava perto do aeroporto. Policiais revistaram a área, mas não encontraram nada.

    Em abril de 1995, dois homens que andavam de quadriciclo perto do aeroporto encontraram os restos mortais de Ramona enterrados debaixo de algumas árvores. Hoje, flores de plástico e uma cruz de vidro enfeitam o túmulo dela no cemitério de Smithers, a algumas quadras da casa de Wilson, numa área reservada para trailers.

    Revoltada com a polícia por não ter encontrado a adolescente ou alertado as pessoas sobre o histórico de mulheres desaparecidas perto da Rodovia 16, Wilson e sua família organizaram uma caminhada memorial em junho de 1995, que, desde então, converteu-se em evento anual, chamando a atenção da mídia e inspirando ativismo da parte das famílias de outras mulheres desaparecidas.

    "Queremos que os casos sejam elucidados. E não vamos desistir", disse Wilson, varrendo folhas do túmulo de sua filha.

    Tradução de Clara Allain

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