• Mundo

    Saturday, 18-May-2024 12:20:45 -03

    Jornalista relata o que viu na violenta repressão à praça chinesa, em 1989

    JOHANNA NUBLAT
    DE SÃO PAULO

    04/06/2016 07h01

    Quando as tropas chinesas entraram na praça da Paz Celestial (Tiananmen), no coração de Pequim, na noite de 3 de junho de 1989, a jornalista canadense Jan Wong acompanhava —e anotava— tudo da sacada de um hotel bem próximo ao local.

    Em entrevista à Folha, Wong, 63, relata suas impressões mais vivas da repressão do governo chinês ao protesto de estudantes que completa 27 anos na madrugada deste sábado (4).

    "Ver os soldados andando e atirando era incrível, estávamos dentro da cidade!"

    Wong é autora do livro "Red China Blues", em que narra seu primeiro contato com a China (terra dos avós), ainda durante a Revolução Cultural —tumultuado período entre 1966 e 1976, com desorganização social e mortes—, e apresenta seu testemunho do chamado massacre da praça da Paz Celestial.

    Hoje Wong dá aulas de jornalismo na Universidade de St. Thomas, em Fredericton (Canadá).

    *

    Folha - A sra. era repórter na China, em junho de 1989. Quais são suas lembranças mais vívidas do episódio?

    Jan Wong - Eu me lembro como foi chocante ver os soldados atirando nas pessoas e os taques... Me lembro do choque de ver tanques nas ruas de Pequim. Eu morava havia muitos anos em Pequim, nunca esperei ver aquilo, ver os tanques esmagando as barricadas que as pessoas tinham erguido e andando na rua principal de Pequim, a Chang'an.

    E, depois, ver os soldados andando e atirando, era incrível, estávamos dentro da cidade! As pessoas não tinham armas, e os soldados ainda atiravam nelas.

    E minha terceira impressão mais profunda foi ver "o homem do tanque", na segunda-feira [5 de junho] de manhã.

    A sra. viu o "homem do tanque"?

    Sim, eu vi, porque eu ainda estava no hotel [nos arredores da praça] e tive medo de sair. Tinha receio que, se eu saísse, não pudesse voltar ao meu quarto. Eu estava trabalhando no quarto do hotel e, na manhã daquela segunda-feira, meu marido estava no balcão e disse "melhor você vir aqui". E lá estava "o homem do tanque".

    Fiquei olhando para ele, o tanque ainda estava com o motor ligado, e pensei que ele seria atropelado. Vi o homem se movendo, tentando parar o tanque, e o tanque tentando contorná-lo. Fiquei chocada, achei que ia ver alguém ser morto na minha frente, mas me surpreendi quando o tanque desligou o motor e eles esperaram. A rua estava em silêncio.

    [A repressão em] Tiananmen aconteceu de um sábado [3 de junho] à noite para um domingo [4 de junho] de manhã. Então, na segunda [5 de junho], não havia trânsito na rua. Houve alguns gritos e dois homens vieram e levaram o homem.

    Pensei "como vou escrever sobre isso?". Liguei para minha editora e disse "não consigo explicar o que houve", e ela disse "ok, temos as imagens". No hotel, ainda havia alguns jornalistas, equipes de TV e fotógrafos.

    Então aconteceu num sábado de noite?

    Sim, os soldados começaram a chegar por volta de 21h ou 22h. Nós não tínhamos um jornal no domingo, então estava mais relaxada. Nós estávamos muito cansados, porque vínhamos trabalhando nessa história havia muito tempo. Eu estava indo em direção ao aeroporto para um hotel com uma piscina, para nadar. E vi os soldados entrando em grupos. Liguei para outros jornalistas e me disseram que eles estavam entrando na cidade, vindos de todas as direções.

    Voltei e fui para a praça, cheguei acho que por volta das 23h e fiquei até 1h, quando voltei para o hotel. E, nesse momento, o Exército chegou. Na praça, eu fiquei com medo, porque havia rumores que os soldados estavam chegando. Fiz minhas entrevistas e quis voltar para o hotel para observar, porque era muito perigoso. Todos estavam correndo, como uma debandada. E, na praça, não há onde se esconder ou proteger.

    O hotel já estava trancado pelo lado de fora, tive que escalar o portão, não sei como consegui. Lá dentro, eles [as forças policiais] estavam atrás dos repórteres, porque havia muitos no hotel. Eu não queria perder minhas anotações, então escondi os papeis dentro da minha calça. Como eu pareço chinesa, consegui passar e entrar no meu quarto.

    Como a sra. vê o fato de a China ignorar esse episódio violento?

    Acho que é um sinal de fraqueza do governo, eles têm medo. O aniversário de 50 anos da Revolução Cultural acabou de acontecer [em maio] e eles tentaram não falar nada a respeito. No último minuto, o "People's Daily" [um dos jornais oficiais do país] disse que [a Revolução Cultural] tinha sido um grande erro. Mas, considerando o tamanho do evento e que era o aniversário de 50 anos dele, isso não é nada.

    Ainda é o mesmo partido, eles não querem reconhecer, fingem que não aconteceu e não querem que ninguém fale dele. Tiananmen é tratada da mesma forma, querem fingir que não aconteceu e não permitem que ninguém fale dela. E, de certa forma, foram bem sucedidos, porque a geração mais nova não sabe o que aconteceu. Mas é normal, em qualquer país, que a nova geração não conheça.

    Mas, porque havia tantos repórteres lá, não acho que o mundo vai esquecer.

    A sra. acredita que algum dia vai haver um reconhecimento público e um pedido de desculpas?

    Sim, acredito. Mas, como repórteres, não gostamos de prever o futuro. A China valoriza sua história e, na tradição chinesa, a dinastia seguinte sempre escreve a história da anterior. Então, um dia, quando o Partido Comunista não existir mais, acredito que o próximo governo vai escrever a história e há registros o suficiente para isso.

    E por que digo "quando o partido não existir mais"? Porque há uma contradição real entre a riqueza da China e o mandato político. Com as pessoas se tornando mais ricas na China, elas têm a cabeça mais independente, viajam, leem, são mais bem educadas. Tudo isso não é compatível com um governo de estilo comunista.

    Por essas duas razões, acho que teremos um pedido de desculpas e uma responsabilização um dia.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024