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    Vítima de aluno de Stanford critica juiz por pena branda para estuprador

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE NOVA YORK

    06/06/2016 18h27

    "Você bebeu no jantar? Não? Nem mesmo água? Quanto você bebeu [na festa]? Quanto bebe em geral? O que estava vestindo? Por que você foi à festa? Você costuma ir a baladas em fraternidades? Você está a sério com seu namorado? Tem histórico de traição?"

    "O ataque sexual havia sido claro, mas aqui eu estava, no julgamento, respondendo questões assim", descreveu uma vítima de estupro no julgamento que terminou com seis meses de prisão para seu antagonista.

    O caso ganhou dimensão global após o juiz sentenciá-lo a 3,5% dos 14 anos que poderia enfrentar na pena máxima para as três acusações aceitas com unanimidade pelo júri, composto por oito homens e quatro mulheres.

    Eram elas: ataque sexual com intenção de estuprar uma mulher intoxicada, penetração com objeto estranho enquanto ela estava nesse estado e também inconsciente.

    O magistrado argumentou que encarceramento maior teria "grave impacto" no réu, que não deve passar mais do que três meses na cadeia e depois sairá em liberdade condicional.

    Em janeiro de 2015, a jovem —que não teve o nome divulgado— foi encontrada por dois estudantes inconsciente e seminua, atrás de uma lixeira nos arredores de uma fraternidade da Universidade Stanford, na Califórnia.

    Brock Turner, 20, estava em cima dela. Avistado pelos alunos, que estavam de bicicleta, tentou fugir, mas a dupla o deteve até a polícia chegar. Na quinta (2), a vítima, hoje com 23 anos, leu uma carta no tribunal.

    Ao site BuzzFeed, disse após a sentença, que saiu no mesmo dia: "Quero que o juiz saiba que ele acendeu um pequeno fogo. Se serviu para alguma coisa, é uma razão a mais para todos nós falarmos ainda mais alto".

    CONVITE

    Era uma noite tranquila de sábado, e seu pai tinha preparado o jantar. Ela se sentou à mesa com a irmã mais nova, que os visitava no fim de semana. Planejava ficar em casa, ver TV e ler. Mas a irmã ia numa festa.

    "Então, decidi que era minha única noite com ela, não tinha nada melhor para fazer, então por que não? Tinha uma festa besta a dez minutos da minha casa. Eu iria, dançaria que nem uma idiota, envergonharia minha irmã mais nova."

    No caminho, brincou que calouros provavelmente usavam aparelho no dente. A irmã a zombou por usar um cardigã bege que a assemelhava a "uma bibliotecária num evento da fraternidade".

    A garota conta que bebeu. "E muito rápido, sem perceber que minha tolerância diminuiu um bocado desde a faculdade."

    Acordou numa maca, com sangue seco no pulso e nos cotovelos. Achou que tivesse caído. Quando lhe contaram do estupro, tinha certeza que estavam falando com a pessoa errada.

    Quando foi ao banheiro, deu-se conta que quem estava enganada era ela. "Meu cérebro tentava convencer minhas entranhas a não terem um colapso. Porque meu interior estava dizendo: me ajuda, me ajuda."

    Ela só compreendeu o que realmente havia se passado naquela noite dias depois, no trabalho. Conferia o noticiário no telefone e, de repente, leu sobre seu ataque.

    "Aprendi pela primeira vez como fui encontrada inconsciente, com meu cabelo despenteado, meu colar enrolado no pescoço, meu sutiã puxado para fora do vestido, o vestido levantado acima da cintura. Eu estava de nádegas de fora, as pernas uma para cada lado, e fui penetrada por um objeto desconhecido por alguém que não conhecia."

    Na reportagem, leu algo que "jamais perdoaria", diz. "Segundo ele, eu gostei. Eu gostei."

    Ela compara essa afirmação com matérias sobre um carro encontrado numa vala, depois de uma batida. "Talvez o automóvel tenha gostado. Talvez o outro carro não tenha desejado acertá-lo."

    IMPRENSA

    A vítima também criticou reportagens que, logo de cara, listaram os feitos esportistas de seu estuprador. Turner nadava na equipe de Stanford e aspirava disputar uma Olimpíada.

    "Ela foi achada em posição fetal, com sua calcinha arriada, em posição fetal. Aliás, ele é ótimo na piscina!", a garota ironiza, reproduzindo o tom da imprensa.

    "Sou muito boa na cozinha, escreve isso também. Acho que o fim é quando você elenca atividades extracurriculares para cancelar todas as coisas doentias que aconteceram."

    No mesmo dia, contou aos pais o que tinha acontecido. Disse para "não olharem o noticiário porque era perturbador", mas queria que soubessem que "estava tudo bem". "Mas, no meio da conversa, minha mãe teve que me segurar porque eu não conseguia mais ficar em pé."

    A jovem afirma que estava disposta a perdoá-lo se ele se desculpasse formalmente, "e nós dois pudéssemos seguir em frente".

    Até saber que Brock Turner contratou "poderosos advogado e detetives particulares para descobrir detalhes sobre minha vida pessoal que pudessem ser usados contra mim, para achar incoerências na minha versão".

    A intenção, diz, era mostrar o estupro com um "mal-entendido". Os advogados de Turner também teriam explorado a falta de memória da garota no dia do ataque —fato que só descobriram no meio do processo.

    "Brock tinha uma estranha nova história. Quase poderia ser um romance adulto, com beijos e dança e mãos dadas. O mais importante, de repente havia consenso. Um ano mais tarde, ele lembrou, ah, sim, aliás, ela consentiu."

    O júri não se convenceu e foi unânime ao acusá-lo, sem comprar essa e outra linha de defesa: o réu era vítima também, da "cultura do álcool" na universidade. "Esta não é uma história de mais um calouro bêbado tomando má decisões. Estupro não é acidente", leu a garota atacada na corte.

    "Você não errou ao beber. Todo mundo à sua volta não estava me estuprando. Você errou por fazer o que ninguém mais fez —tirar seu pênis ereto para fora da calça e pressioná-lo contra meu corpo nu e indefeso numa área escura."

    SENTENÇA

    A frouxidão da sentença não surpreendeu Jennifer McCleary-Sills, diretora de Gênero, Violência e Direitos no Centro Internacional de Pesquisa sobre Mulheres.

    "Isso reforça uma mensagem perigosa e, infelizmente, antiga de que o estupro não é considerado algo sério no nosso sistema de justiça.

    A mesma sensação de impunidade, McCleary-Sills diz à Folha, mantém viva a "cultura do estupro" em vários países –menciona o recente estupro coletivo de uma menor de idade no Brasil.

    Ela cita uma pesquisa em que 68% dos ataques sexuais não são reportados à polícia nos EUA. "E da minoria que chega à polícia, apenas 7% vai resultar numa prisão, e apenas dois em cem estupradores acusados vão de fato passar um dia na cadeia. É o mesmo que dizer que 98% simplesmente se safa deste crime hediondo."

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