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    Nos EUA, Virgínia tem disputa racial sobre direito de criminosos ao voto

    SHERYL GAY STOLBERG
    DO "NEW YORK TIMES", EM RICHMOND (VIRGÍNIA)

    08/06/2016 12h23

    Na noite em que Barack Obama se tornou o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Leah Taylor, negra, mãe de seis filhos e funcionária de um restaurante de fast food, ficou acordada até as 2h, assistindo à contagem de votos.

    "Eu sabia que era um momento histórico, e queria ser parte dele", ela disse. Mas Taylor não votou.

    Taylor, 45, jamais votou. Em 1991, quando tinha 20 anos, perdeu o direito ao voto ao ser condenada a um ano de prisão por tráfico de crack.

    Por isso, ela se espantou quando um organizador de um grupo progressista, a New Virginia Majority, apareceu, há alguns dias, no refeitório da igreja onde ela faz suas refeições, e disse que era possível registrá-la como eleitora.

    Chet Strange/The New York Times
    Assadique Abdul-Rahman (à dir.) ajuda a funcionária de fast food Leah Taylor a preencher registro eleitoral em Richmond (Virgínia)
    Assadique Abdul-Rahman (à dir.) ajuda a funcionária de fast food Leah Taylor a preencher registro eleitoral em Richmond (Virgínia)

    "Seus direitos foram restaurados!", disse o organizador, Assadique Abdul-Rahman, com um floreio teatral, acenando com uma ordem executiva assinada em abril pelo governador Terry McAuliffe. Taylor ficou tão comovida que quase chorou.

    Foi assim que Taylor se uniu a uma leva de pessoas que recentemente se tornaram aptas a votar na Virgínia, todas elas com passados criminosos. Mas aquilo que McAuliffe concedeu a Suprema Corte estadual da Virgínia agora pode cancelar.

    Os líderes republicanos no Legislativo estadual estão tentando bloquear a ordem executiva de McAuliffe, que restaurou o direito de voto de 206 mil virginianos que serviram integralmente suas sentenças, ou seus períodos de liberdade condicional.

    Na semana passada, a Suprema Corte estadual anunciou uma sessão especial para ouvir argumentos sobre o caso, em julho —em tempo para proferir uma decisão antes da eleição de novembro.

    O processo arremessou a Virgínia e McAuliffe —democrata e amigo próximo de Hilary Clinton, a provável indicada presidencial do partido— a ainda outra batalha de fundo racial pelo direito ao voto.

    DOCUMENTO PARA VOTAR

    Em maio, um juiz federal sustentou uma lei aprovada pelos republicanos requerendo que os eleitores do Estado apresentem documentos com foto para que possam votar, enquanto a Suprema Corte manteve um mapa de reordenação de distritos eleitorais desenhado pela Justiça, concebido para atender às queixas dos democratas quanto à manipulação das fronteiras de distritos eleitorais por motivo racial.

    Essa nova disputa sobre a restauração dos direitos eleitorais dos criminosos condenados —uma questão que está em destaque no plano nacional— pode afetar a disputa presidencial nacional e o destino de Hillary na Virgínia, um dos Estados indecisos essenciais para a vitória em uma eleição presidencial.

    Desde que McAuliffe promulgou sua ordem executiva, em 22 de abril, grupos progressistas vêm conduzindo uma campanha agressiva de registro de eleitores. Até a última sexta-feira (3), as autoridades eleitorais do Estado dizem que 5.800 eleitores elegíveis se registraram.

    "Isso pode causar muita complicação", disse Tram Nguyen, diretor executivo da New Virginia Majority, um dos líderes da campanha de registro. "O que acontece se a ordem executiva for revertida? Não há precedentes. Já há 5.800 novos eleitores no registro. Eles terão de ser expurgados?"

    É exatamente isso que os republicanos estão solicitando. Além de reverter a ordem, eles querem os novos registros anulados —uma solicitação que Taylor define como "aterradora".

    Mãe ainda na adolescência, Taylor já tinha filhos quando foi para a prisão, e diz que o tempo que passou lá "lhe deu clareza". Depois de ser libertada, em 1992, ela diz ter feito serviço comunitário, dobrando roupas em uma loja do Exército da Salvação, e pagou US$ 15 mil em multas ao Estado com dinheiro recebido em herança da mãe.

    Hoje, ela tem empregos em tempo parcial no McDonald's e Kentucky Fried Chicken, e está envolvida em causas, fazendo lobby junto a legisladores em favor da campanha por um salário mínimo de US$ 15 por hora. Ela gosta de Hillary e do senador Bernie Sanders, e se define como democrata.

    "Cumpri minha sentença; fiz tudo que devia", ela disse. "Paguei o tribunal. Paguei as multas, e recoloquei minha vida nos trilhos."

    LEI DURA

    Ao promulgar sua ordem executiva, McAuliffe fez uso amplo de seus poderes de perdão para anular um artigo da constituição estadual que data da era da guerra civil e proíbe que criminosos condenados votem, pelo resto de suas vidas —uma das leis mais duras do país quanto a isso.

    Em entrevista anterior ao anúncio da medida, McAuliffe declarou que sua autoridade legal para fazê-lo é "incontestável".

    Mas os republicanos afirmam que o governador não tem a autoridade de restaurar o direito ao voto de maneira geral, e deve em lugar disso proceder em base de caso a caso —como fizeram seus predecessores de ambos os partidos.

    "Ele realmente desrespeitou o Legislativo", disse William Howell, presidente da Câmara de Deputados estadual da Virgínia, que é o principal queixoso no processo aberto pelos republicanos.

    Howell declarou que o processo "nada tinha a ver" com a campanha de registro de eleitores, e descartou as acusações democratas de que os republicanos estavam tentando reprimir o direito dos negros ao voto. "O governador é que começou".

    Mas a questão racial é um subtexto poderoso. Na Virgínia, os negros são 19% da população e 45% dos beneficiados pela ordem executiva do governador. O Sentencing Project, organização de pesquisa sediada em Washington, afirma que 20% dos negros da Virgínia não estão autorizados a votar porque foram condenados por crimes.

    "Quando você considera o fato de que, entre as pessoas mais afetadas pela ordem, 45% são negras, que conclusão pode ser extraída?", perguntou a senadora estadual Mamie Locke, líder da bancada negra no Legislativo da Virgínia, que organizou comícios em favor do voto desses eleitores em três cidades da Virgínia, no sábado (4).

    Os organizadores da campanha de registro dizem que gostariam de registrar até 25 mil eleitores novos em tempo para a eleição de novembro.

    "Isso poderia fazer diferença", disse Bob Holsworth, veterano analista político na Virgínia, apontando que algumas disputas estaduais foram decididas por margens muito pequenas, de cinco ou seis mil eleitores.

    'SENHORA VOTO'

    Aqui em Richmond, a capital do Estado, a campanha de registro de eleitores é mais intensa em algumas das áreas mais pobres da cidade, em lugares como Gilpin Court, um complexo de habitação pública no Jackson Ward, um bairro historicamente negro.

    Karen Fountain, outra das organizadoras da New Virginia Majority, já registrou tantos eleitores que os moradores a chamam de "Senhora Voto".

    Fountain estimou que cerca de três quartos das pessoas com quem conversa em Gilpin Court perderam o direito ao voto. Em uma tarde escaldante de sexta-feira, ela percorria as ruas do bairro, perguntando se estavam informadas sobre o que o "governador Terry", como ela chama McAuliffe, havia feito. Muita gente não sabia da mudança; e algumas pessoas continuam inelegíveis.

    "Não posso; acabo de voltar para casa", disse um jovem tatuado, quando ela perguntou se ele gostaria de se registrar. "Você está em liberdade condicional?", ela perguntou. Ele acenou afirmativamente.

    "Supervisionada?", ela perguntou. Ele repetiu o aceno. "Tudo bem", disse Fountain. "Quando você terminar, pode se registrar."

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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