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    Deserções despencam na Coreia do Norte após posse de Kim Jong-un

    LUISA PESSOA
    DE SÃO PAULO

    10/06/2016 02h00 - Atualizado às 14h02

    A opacidade do regime norte-coreano não permite saber com exatidão o que mudou desde que Kim Jong-un assumiu o poder. Algo, no entanto, é certo. O número de desertores que chegaram à Coreia do Sul despencou. E quatro em cada cinco deles hoje são mulheres.

    Em 2011, data da morte de Kim-Jong-il, pai do atual ditador, 2.076 norte-coreanos adentraram o território da nação vizinha, segundo o Ministério sul-coreano da Unificação. Em 2015, foram só 1.276, uma redução de 39%.

    Jung Yeon-Je - 29.abr.2016/AFP
    Desertores lançam bandeira de Kim Jong-un em protesto na zona desmilitarizada entre as duas Coreias
    Desertores lançam bandeira de Kim Jong-un em protesto na zona desmilitarizada entre as duas Coreias

    De acordo com o governo de Seul, o declínio se deve tanto a reforços do regime na segurança e inspeção de fronteiras quanto ao aumento dos valores cobrados por atravessadores e por guardas como propina.

    Pyongyang passou também a facilitar a concessão de vistos para que norte-coreanos visitem parentes na China e aumentou a punição para pessoas que forem flagradas falando no celular com desertores.

    Para a historiadora Jean Do, professora de cultura e sociedade norte-coreana na Universidade Nacional de Seul, há também uma razão econômica:

    "O regime parece ter ficado mais tolerante, permitindo que mais pessoas recorram a trabalhos informais para ter condições básicas de vida. A crescente e inevitável mercantilização da Coreia do Norte leva as pessoas a buscar meios de sobrevivência no próprio sistema."

    Os números divulgados por Seul não representam o total de deserções do regime a cada ano —não existe estatística oficial de Pyongyang—, mas sim a quantidade de norte-coreanos que, muitas vezes após uma longa jornada por outros países, encontraram refúgio na Coreia do Sul.

    Como a fronteira entre o Norte e Sul é altamente militarizada, desertores não conseguem passar diretamente de um país ao outro.

    A saída normalmente é escapar pela China e de lá tentar chegar a nações como a Mongólia, que enviam refugiados de Pyongyang para a Coreia do Sul. Como o governo chinês tem por política devolver desertores norte-coreanos a Pyongyang, eles acabam obrigados a viver nas sombras.

    Um caso de recente repercussão internacional, detalhado em uma autobiografia traduzida para diversos idiomas ("Para Poder Viver", Companhia das Letras), foi o da jovem Yeonmi Park.

    Com apenas 13 anos, ela chegou à China pelas mãos de atravessadores. Eles faziam parte de uma rede de tráfico de pessoas que vendia "esposas" a homens chineses, aproveitando o deficit de mulheres no país, resultado de anos da política estatal de filho único, hoje extinta.

    HISTÓRICO E MULHERES

    As deserções de norte-coreanos explodiram a partir da década de 1990, quando estimados 600 mil a 1 milhão de cidadãos morreram de inanição, e a crise econômica se agravou. Na época, com o colapso da União Soviética em 1991, o regime viu o fim da ajuda de Moscou.

    Fertilizantes, por exemplo, deixaram de ser usados na agricultura, o que fez despencar a produção de alimentos. A crise levou o governo a lançar a campanha "Vamos Comer Só Duas Refeições Por Dia!", e a situação, que já era grave, piorou com enchentes entre 1995 e 1996.

    A partir de então, também o perfil dos desertores mudou. Se antes o padrão era majoritariamente de homens com alto grau de escolaridade que saíam do país por discordância política, passou a ser de mulheres e crianças pobres e famintas, de acordo com a desertora Yeonmi Park. A chegada de refugiados do país vizinho, antes celebrada pelos cidadãos sul-coreanos, passou a ser encarada com discriminação.

    A Coreia do Norte contesta os dados de Seul. Segundo o espanhol Alejandro Cao, delegado especial do Comitê de Relações Culturais da Coreia do Norte no Exterior, "as poucas deserções que ocorreram se deveram à crise que afetou o país entre 1995 a 2000, devido a inundações e ao colapso econômico".

    "Nessa época, foi pedido à China que abrisse suas fronteiras para dar refúgio humanitário aos habitantes da região norte. Dezenas de milhares estiveram com parentes chineses, até que a situação melhorou. Mas cerca de 300 não voltaram num primeiro instante, acreditando que no capitalismo poderiam viver melhor", diz Cao por e-mail. "Infelizmente, não foi o que ocorreu. Muitos quiseram voltar à Coreia do Norte, mas foram impedidos."

    Já a grande proporção de mulheres entre os desertores, segundo a historiadora Jean Do, deve-se a uma peculiaridade do sistema econômico do regime de Pyongyang.

    "Nele, os homens são obrigados a ter empregos em período integral, e eles devem se apresentar todos os dias em repartições públicas, unidades militares, fábricas e empresas estatais, mesmo que os salários sejam baixíssimos. Essa exigência não se aplica às mulheres, que são autorizadas a ficar desempregadas para se concentrar em tarefas domésticas."

    De acordo com ela, isso permitiu que as norte-coreanas pudessem se inserir e trabalhar no mercado negro para garantir a sobrevivência de suas famílias. Além disso, de ter mais oportunidades para desertar.

    A Coreia do Norte dá outra explicação. Segundo Cao, como na crise dos anos 1990 as pessoas sabiam que aquele seria "um problema temporário", algumas famílias aceitaram se separar: "em muitos casos, o homem ficou com as crianças trabalhando no povoado natal e as mulheres atravessaram a fronteira [com a China] para receber ajuda".

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