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    Debate por 'Brexit' causa 'guerra civil' entre os conservadores britânicos

    KATE ALLEN
    GEORGE PARKER
    DO "FINANCIAL TIMES"

    10/06/2016 12h00

    "Desonestos", "enganosos" e "esquálidos": Sir John Major, antigo primeiro-ministro britânico conhecido pelos bons modos, não economizou no vocabulário, alguns dias atrás, ao definir seus colegas conservadores que estão liderando a campanha para tirar o Reino Unido da União Europeia.

    "Os desatinos amargurados de um homem vingativo", replicou Jacob Rees-Mogg, membro do Parlamento pelo Partido Conservador e ardoroso adversário da integração britânica à União Europeia.

    Inicialmente, o primeiro-ministro David Cameron prometeu um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia como maneira de aquietar a rebelião dos conservadores que não apoiam a união.

    Paul Faith - 7.jun.2016/AFP
    Placa contra o 'brexit', a saída do Reino Unido da União Europeia, na Irlanda do Norte
    Placa contra o 'brexit', a saída do Reino Unido da União Europeia, na Irlanda do Norte

    Mas a votação a ser realizada em 23 de junho —depois de uma venenosa campanha que opõe diferentes alas do Partido Conservador, de centro-direita— ameaça pôr fim à carreira política de Cameron, nos próximos dias, e envenenar o partido por anos.

    Um partido tão seriamente fracionado pode enfrentar dificuldades para continuar governando o Reino Unido nos quatro anos de mandato que lhe restam. Se os britânicos votarem por deixar a União Europeia, a maioria dos parlamentares acredita que Cameron renunciará ao posto.

    Mesmo que o voto seja pela permanência, ele pode ter de encarar uma disputa pela liderança do partido contra Boris Johnson, outro conservador, ex-prefeito de Londres e hoje um dos líderes da campanha pela saída do bloco europeu, e Johnson teria chances reais de vitória.

    GUERRA CIVIL

    O partido, que obteve uma vitória retumbante na eleição do ano passado, agora vive em estado de guerra civil.

    "Não quero apunhalar o primeiro-ministro pelas costas —quero apunhalá-lo pela frente, para poder ver sua cara quando o fizer", disse ao "Sunday Times" um dos parlamentares conservadores que se opõem à permanência britânica na União Europeia.

    Os partidários de Cameron não estão se comportando de modo muito mais contido. "O que o primeiro-ministro precisa fazer é fuzilar alguns dos rebeldes à beira da estrada", disse um veterano parlamentar sobre seus colegas conservadores.

    Os conservadores favoráveis a deixar a União Europeia estão enfurecidos com a campanha de Cameron para manter o Reino Unido como parte do bloco e com seus alertas severos sobre as consequências da saída.

    Alguns deles questionaram abertamente as realizações políticas de Cameron e contestaram sua integridade.

    Nadine Dorries, membro do Parlamento pelo Partido Conservador, acusou Cameron de "mentir profundamente" sobre as possíveis consequências de deixar a União Europeia. "Se o primeiro-ministro tivesse adotado uma postura menos parcial e se colocado acima da disputa, teria sido muito melhor para o partido", disse outro colega.

    INTEGRAÇÃO

    Os conservadores há muito se orgulham de ser o partido governista natural do Reino Unido, e os melhores condutores de sua economia.

    Mas há três décadas se veem divididos pela questão da integração com a Europa, que desafia os preceitos de soberania e nacionalidade do partido.

    Antes das dificuldades de Sir Major com a questão, Margaret Thatcher perdeu o poder em 1990 depois de entrar em disputa com seus assessores quanto à união monetária da Europa.

    Grande número de conservadores há muito veem Bruxelas como ameaça às tradições de livre mercado do Reino Unido e à soberania de seu Parlamento. Mas o partido se tornou quase que uniformemente cético quanto à União Europeia, depois da passagem de Sir Major por sua liderança, nos anos 90.

    Os desacordos de hoje concernem à forma que essa oposição à integração com a Europa deve tomar —se o Reino Unido deveria permanecer na União Europeia e buscar mudá-la ou se deveria sair.

    PRÓXIMAS ELEIÇÕES

    As tensões no debate sobre o referendo deste ano também foram alimentadas por ambições políticas e pela vulnerabilidade política do primeiro-ministro —ainda que, teoricamente, o governo devesse estar em ascensão, porque enfrenta uma oposição enfraquecida da parte do Partido Trabalhista, agora sob a liderança de Jeremy Corbyn, um socialista de extrema-esquerda.

    Cameron já prometeu que deixará o posto antes da eleição de 2020, e o referendo ofereceu uma plataforma aos candidatos à sua sucessão —especialmente Johnson, que se tornou o astro da campanha pela saída da União Europeia.

    As aparições diárias de Johnson na mídia permitiram que ele divulgasse propostas que às vezes parecem constituir um programa alternativo de governo.

    Hannah McKay/Reuters
    O ex-prefeito de Londres Boris Johnson (centro), com o primeiro-ministro Cameron (à dir.) e o candidato do Partido Conservador a prefeito da capital, Zac Goldsmith
    O ex-prefeito de Londres Boris Johnson (centro), com o primeiro-ministro Cameron (à dir.) e o candidato do Partido Conservador a prefeito da capital britânica, Zac Goldsmith (à esq.)

    Já que a maioria funcional do governo no Parlamento é de apenas 17 cadeiras, um pequeno grupo de rebeldes extremistas poderia, para todos os efeitos, chantagear Cameron. É improvável que essa ala seja silenciada por uma vitória da campanha pela permanência na União Europeia.

    "Todos os problemas de nossa participação na União Europeia não desaparecerão se a campanha do 'fique' sair vitoriosa", disse Bernard Jenkin, um veterano parlamentar que participou das disputas com Sir Major nos anos 90. "Eles só vão piorar."

    Alguns analistas sugerem que o primeiro-ministro encontrará tamanha pressão que resistir será difícil. "Ele passou praticamente todo o seu tempo na liderança do partido tentando acomodar os inimigos da integração com a Europa", disse Tim Bale, conhecido historiador do Partido Conservador. "Mas sempre que Cameron lhes deu um dedo eles tomaram uma mão inteira e exigiram ainda mais."

    Bale prevê que a melhor esperança de Cameron seja acomodar seus adversários internos com medidas duras quanto a questões centrais como a imigração e um programa econômico liberal de direita.

    RENOVAÇÃO DO TRIDENT

    O partido também poderia buscar resolver suas divisões partindo para o ataque.

    Há forte expectativa de que Cameron tente desviar a agenda noticiosa para questões sobre as quais os conservadores estão unidos e os trabalhistas, divididos, como a renovação do sistema Trident de dissuasão nuclear.

    "Precisamos voltar àquilo que fazemos melhor —descer a botina nos trabalhistas", disse um parlamentar conservador.

    Essa prioridade interessa à nova geração de parlamentares conservadores, que encaram com desagrado a disputa interna gerada pelo referendo.

    Muitos dos parlamentares eleitos nos últimos seis anos, embora céticos quanto à União Europeia, não compartilham dos sentimentos de seus colegas mais experientes em Westminster.

    "Não quero, dentro de 20 anos, ser definido antes de tudo como cético quanto à União Europeia; preocupo-me com muitas outras questões além dessa", disse um parlamentar que chegou a Westminster no ano passado e apoia a saída da União Europeia. "Não quero ferrar minha carreira pelos princípios dos outros."

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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