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    Debate sobre 'Brexit' esquece eleitores de cidades pobres do Reino Unido

    SIMON KUPER
    DO "FINANCIAL TIMES"

    14/06/2016 12h20

    "Às vezes, eu penso: se você pusesse um desempregado no poder, talvez ele fizesse um trabalho melhor do que o governo está fazendo agora", diz Susan Boardman.

    A "senhora sol", voluntária na igreja Metodista Tranmere (ela é católica, mas ninguém se importa), está ajudando um grupo de mães e crianças locais a fazer joias em uma manhã durante as férias escolares. Trata-se de um entretenimento gratuito, muito necessário em Birkenhead.

    Dentro e nos arredores dessa cidade, logo a oeste do rio Mersey de Liverpool, estão "algumas das regiões mais carentes da Inglaterra", de acordo com a Saúde Pública da Inglaterra.

    Paul Faith/AFP
    Placa da campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia em cidade da Irlanda do Norte
    Placa da campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia em cidade da Irlanda do Norte

    O Reino Unido realizará seu referendo sobre a adesão à União Europeia no próximo dia 23 e o papel dos que apoiam o Partido Trabalhista entre a classe operária se tornou cada vez mais importante nos últimos dias antes da votação.

    Mas há poucos sinais disso em Birkenhead, depois de dias em que as divisões no governante Partido Conservador dominaram o debate. Várias horas vagando pela cidade mostram apenas um cartaz da campanha, em prol do "Permanecer", na janela de uma casa.

    Boardman indica a razão: em uma cidade onde muitos se sentem abandonados por todos os políticos, e algumas pessoas passam fome, a questão europeia parece distante.

    Ela pessoalmente está a favor da permanência, mas é cautelosa: "Não converso sobre isso com as pessoas, essa é apenas minha opinião pessoal. Política e religião causam discussões, então não queremos falar sobre isso, realmente".

    ELEITORADO DESIGUAL

    A maioria dos trabalhadores britânicos, pelo contrário, é favorável à saída da União Europeia, de acordo com pesquisas. O desafio para a campanha "Sair" é convencer esse grupo a votar.

    Birkenhead apresenta um eleitorado excepcionalmente desigual.

    Em um extremo estão as mansões da rica Oxton, "que faz com que Hampstead pareça vulgar", diz Frank Field, parlamentar do Partido Trabalhista de Birkenhead desde 1979.

    Algumas pessoas da classe trabalhadora da região têm uma boa renda também, como o grande grupo de homens locais que se prepara para voar para Amsterdã, para um fim de semana 100% masculino.

    DW/j.Macfarlane
    Bolsa com a frase "Vote pela saída"; britânicos votam pela permanência ou não do Reino Unido na União Europeia no próximo dia 23
    Bolsa com a frase "Vote pela saída"; britânicos votam no dia 23 pela permanência do Reino Unido na UE

    Mas Field diz que "as classes mais baixas saíram do mercado de trabalho". A maioria dos tradicionais empregos em fábricas e no cais acabou.

    Muitos moradores agora têm "contrato de zero hora" —que não oferecem nenhum trabalho garantido— como cuidadores, empregados de supermercados ou seguranças.

    Alguns têm que entrar e sair do sistema de benefícios, o que pode ser difícil de conseguir. Agora também é punido quem falta a consultas.

    Cerca de 11% da população economicamente ativa de Birkenhead é classificada como "doentes de longo prazo", muitas vezes com doenças mentais. Aqui, os homens das regiões pobres podem esperar ter 20 anos a menos de uma vida livre de problemas de saúde, em comparação com os homens nas regiões mais ricas e rurais do mesmo distrito administrativo de Wirral.

    No ano passado, cerca de 10 mil pessoas em Birkenhead usaram o Banco de Alimentos de Wirral, que funciona principalmente em igrejas locais, de acordo com Richard Roberts, o gerente do banco de alimentos.

    Boardman, a "senhora sol", observa: "É degradante. Os homens acreditam que são os principais geradores de renda da casa, e então a esposa tem de ir ao banco de alimentos para conseguir comida para as crianças porque eles não podem fornecê-la".

    FOME

    Ema Wilkes, do Neo Comunity Café, vê os pais pularem refeições durante dois ou três dias antes do dia de pagamento para que seus filhos possam comer. Algumas crianças vão à escola com fome.

    Alguns moradores que enfrentam essas lutas diárias acreditam que tanto o voto por "Permanecer" como por "Sair", em 23 de junho, não mudará suas situações.

    O reverendo Steve Carpenter, da igreja Metodista, diz: "O debate [sobre o referendo] está longe demais das circunstâncias locais, como acontece com a maioria das questões nacionais". Ao ser solicitado a descrever a política dos seus eleitores mais pobres, responde: "Nada".

    APATIA

    O Partido Trabalhista é a força política no poder há tempos na cidade: a maioria de Frank Field nas eleições gerais de 2015 foi de 20.652.

    "Não há nenhum voto conservador em Birkenhead", diz Moira McLaughlin, vereadora trabalhista. Em vez disso, o maior adversário local dos trabalhistas é a apatia.

    Fora do distrito de Oxton, menos de um em cada três eleitores locais habilitados no distrito eleitoral votou nas eleições municipais de maio.

    McLaughlin espera uma ida às urnas ainda menor para o referendo europeu.

    Eve Barrett, organizador comunitário sênior no North Birkenhead Development Trust (Fundo de Desenvolvimento do Norte de Birkenhead), incentiva as pessoas a se registrarem para votar, às vezes ajudando-as a fazer isso em seu acessível smartphone, mas ela afirma que muita gente acha a ideia de um formulário de registro algo intimidante. Algumas pessoas temem que aparecer nos registros eleitorais possa colocar os credores atrás delas.

    Nem a campanha pelo "Sair" nem a que defende o "Permanecer" são muito ativas aqui. O Partido Trabalhista de Birkenhead está dividido em relação à Europa, com Field a favor da saída —"com relutância, porque sempre há riscos", diz ele—, enquanto seus colegas trabalhistas seguem a linha do partido e apoiam o "Permanecer".

    Field diz que, nas décadas em que vem fazendo campanha em Birkenhead, a Europa nunca foi um grande tema em vista.

    Poucos habitantes se preocupam sobre se a distante Westminster perde poderes para a distante Bruxelas. Também não estão muito entusiasmados com a União Europeia, apesar dos fundos europeus destinados a áreas carentes, que Birkenhead recebe desde a década de 90.

    IMIGRAÇÃO

    O dinheiro europeu ajudou a financiar uma rodoviária premiada e a renovar o centro da cidade.

    Birkenhead ostenta um boulevard Europa, uma praça Europa e piscinas Europa. Mas, segundo McLaughlin, poucos moradores sentem que receberam benefícios pessoais da União Europeia: "Eles não veem isso porque têm muito pouco dinheiro".

    A questão que gera mais comoção aqui, em relação à União Europeia, é a imigração.

    Os "britânicos brancos" compunham 94% da população de Birkenhead no censo de 2011. No entanto, alguns moradores temem uma afluência de pessoas em busca de asilo, gente que eles acreditam que competiria por moradia e emprego.

    Field afirma que, se houver uma grande e televisionada debandada de imigrantes tentando entrar na União Europeia, "então se acabou" —o voto "Brexit" ganharia.

    McLaughlin concorda que a imigração é uma questão local importante e diz: "Eu diria que quase tenho medo de incentivar a votação no meu distrito porque acho que, se eles forem votar de fato, será para sair".

    Sua teoria é apoiada por uma pesquisa da YouGov de março, que constatou que mais de 60% das classes sociais mais baixas C2, D e E apoia o "Brexit".

    No entanto, como a YouGov aponta, enquanto a campanha pelo "Permanecer" pode lutar para fazer com que jovens pró-europeus votem, a campanha pelo "Sair" enfrenta a mesma luta entre os trabalhadores eurocéticos. McLaughlin diz: "Acho que a maior votação em Birkenhead será ficar em casa".

    Tradução de DENISE MOTA

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