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    Saída da União Europeia pode provocar caos judicial no Reino Unido

    SARAH GORDON
    DO "FINANCIAL TIMES"

    22/06/2016 07h00

    Destrinchar o Reino Unido de décadas de legislação europeia levaria anos e poderia criar um caos constitucional, segundo juristas.

    "A lei da União Europeia faz parte da lei britânica, e sua adoção deu aos cidadãos, empresas e autoridades públicas britânicos direitos e deveres", disse a professora Sionaidh Douglas-Scott, especialista em direito constitucional na Universidade Queen Mary, em Londres. "Rejeitá-los ou emendá-los seria um processo complexo e custoso. Sérios prejuízos e caos serão causados à Constituição britânica nesse processo."

    Justin Tallis/AFP
    Partidário da saída britânica da União Europeia leva cartaz de campanha em Clacton-on-Sea, na Inglaterra
    Partidário da saída britânica da União Europeia leva cartaz de campanha em Clacton-on-Sea (Inglaterra)

    A saída do Reino Unido da UE, segundo a professora, exigiria a revogação de leis como a Lei de Comunidades Europeias (ECA na sigla em inglês), mecanismo pelo qual a lei europeia é inserida no corpo da lei britânica.

    Mas uma grande complicação é que a ECA e outras legislações básicas que implementam as leis europeias são incorporados diretamente nos estatutos de devolução [transferência de poderes do Parlamento britânico] na Escócia, em Gales e na Irlanda do Norte.

    OS DOIS LADOS DO 'BREXIT'​

    A Lei da Escócia de 1998 afirma que os atos do Parlamento escocês que são incompatíveis com a legislação da UE "não são lei". Dispositivos semelhantes existem na Lei do Governo de Gales e na Lei da Irlanda do Norte.

    "Se o governo do Reino Unido insistir que os poderes repatriados de Bruxelas vão para Westminster [após um potencial voto pela saída da UE], isto poderia colocar Westminster e Holyrood [Parlamento escocês] em rota de colisão", disse Andrew Scott, professor de Estudos da União Europeia na Universidade de Edimburgo.

    Por exemplo, a política de controle da agricultura e da pesca, conferida à Escócia na época em que a devolução foi aprovada porque a UE teria responsabilidade nessa área, voltaria à Escócia no caso da saída da UE, disse o professor Scott. "Isto armaria então um grande problema constitucional porque o governo do Reino Unido provavelmente gostaria de manter o controle dessas áreas."

    Por convenção, Westminster deve buscar o consentimento do Parlamento escocês para leis sobre questões de devolução. Qualquer tentativa de um governo britânico forçar mudanças provavelmente causaria indignação na Escócia —onde pesquisadores sugerem que a maioria pretende votar pela permanência na UE— e aumentaria o apoio a um segundo referendo sobre a independência.

    Entretanto, o Acordo de Belfast, ou da "Sexta-feira Santa" de 1998, inclui dispositivos baseados no ECA e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. E advogados dizem que a situação do Reino Unido e da Irlanda como países membros da UE está "entremeada em todo o acordo".

    Além desses potenciais emaranhados constitucionais, extricar o Reino Unido do abraço jurídico da UE exigiria identificar quais leis não serão mais aplicáveis ou deverão ser reelaboradas e quais terão de ser revogadas ou substituídas.

    "O Reino Unido teria de decidir que partes da lei da UE deseja manter e quais jogar fora", disse Phillip Wood, chefe da unidade de inteligência em direito global da Allen & Overy. "A regulamentação financeira e antitruste e as pensões seriam apenas exemplos de diversas áreas complexas."

    Simon Gleeson, sócio da Clifford Chance, descreveu como "monumentais" os recursos necessários para inserir a saída da UE na legislação do Reino Unido. "Será simplesmente impossível fazer uma revisão abrangente da legislação da UE antes de qualquer data de saída razoável", disse ele.

    A opção mais simples para o governo britânico —traduzir a lei existente da UE em lei britânica em um único "Ato Brexit"— é possível, mas politicamente perigosa. "O grau de poda [da lei europeia] poderia ser altamente político, já que o eleitorado pode estar dizendo que quer sair da UE, e não levá-la consigo", disse Wood.

    Algumas leis da UE —como as regras sobre aplicação de veredictos e a alocação de jurisdições— não podem ser totalmente transpostas, porque devem ser reciprocadas pelos parceiros do Reino Unido na UE.

    Outras leis também exigiriam o acordo de ex-parceiros no bloco. O chamado "passporting" que permite que empresas de serviços financeiros sediadas no Reino Unido operem livremente em toda a UE, é um exemplo.

    "Algumas regras têm como premissa o fato de que existe acesso a um mercado europeu mais amplo —por exemplo, a regulamentação das instituições financeiras", disse Martin Coleman, sócio de uma firma de advocacia global e membro de um grupo a favor da permanência na UE chamado "Lawyers - In for Britain".

    DESAFIOS

    A natureza do sistema jurídico britânico apresenta desafios especiais para os que querem reverter a atual legislação da UE: grande parte dela foi incorporada à lei britânica e testada nos tribunais, e portanto se tornou parte da jurisprudência. Isso quer dizer que mesmo que um estatuto seja removido, seus princípios —por exemplo, sobre legislação que rege os direitos trabalhistas— permaneceriam em vigor.

    "Se os tribunais concluíram que a abordagem correta de X é Y, se você simplesmente remover esse estatuto a abordagem continuará", disse Gleesan, da Clifford Chance.

    Outros indicam que, embora decisões anteriores do Tribunal de Justiça da União Europeia provavelmente serão contestadas em juízo após uma saída do Reino Unido, não haveria retorno direto ao status quo antes da adesão do Reino Unido à Comunidade Econômica Europeia em 1973. A situação exata da jurisprudência gerada durante a afiliação do Reino Unido ao bloco se tornaria, portanto, perigosamente opaca.

    "Se parte da lei da UE for mantida na lei doméstica após a saída, quais seriam os mecanismos usados para interpretá-la?", indagou a professora Douglas-Scott. "Os tribunais britânicos reverteriam aos entendimentos da lei anteriores a 1972, ou continuariam examinando a lei europeia e as decisões do Tribunal de Justiça europeu para interpretar a lei britânica?"

    Além disso, novas leis domésticas teriam de ser adotadas para preencher lacunas onde a UE tem competência hoje —por exemplo, no licenciamento de remédios—, disse a professora.

    Qualquer que seja o tipo de divórcio jurídico após a saída, amarrará recursos durante vários anos. "Você tem de pensar nisso como um acesso reverso [à UE]. É o serviço público inteiro durante uma década", disse Gleeson.

    Daniel Shurman, sócio da Allen & Overy, chamou-a de "a maior de-fusão da história —a quinta economia do mundo deixando o maior bloco comercial do mundo".

    E acrescentou: "Se alguém quisesse reescrever os milhares de páginas [da legislação relevante] desde o início, seria obviamente uma tarefa incrivelmente complexa e demorada, e não acho que as pessoas avaliaram plenamente o desafio".

    Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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