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    'A Colômbia não está preparada para a paz', diz ex-guerrilheira das Farc

    DA AFP

    23/06/2016 16h54

    Antes uma aguerrida comandante das Farc, hoje gestora da paz, "Karina" costura os uniformes dos militares que ferozmente combatia. Reclusa em uma base no noroeste da Colômbia, concorda com os soldados sobre o "absurdo" de um conflito fratricida e pede a reconciliação.

    Mas "a Colômbia não está preparada para a paz. Falta que as pessoas desarmem seus corações, e esse é um trabalho árduo que será preciso fazer", diz a ex-combatente em entrevista à AFP, da Brigada 17 do Exército em Carepá, na região de selva de Urabá, Antióquia. Lá completará, em 23 de julho, sua pena de oito anos.

    El Tiempo/AFP
    Cartaz antigo do Exército colombiano mostra um pedido de recompensa pela então guerrilheira 'Karina
    Cartaz antigo do Exército colombiano mostra um pedido de recompensa pela então guerrilheira 'Karina'

    Elda Neyis Mosquera, que "enterrou Karina" quando se entregou em 2008 às autoridades, após 24 anos nas fileiras da guerrilha, tem no rosto e na alma as marcas de meia vida lutando com as Farc.

    "Eu me arrependo muitíssimo", afirma esta afro-colombiana de 48 anos, que perdeu o olho direito em um combate e foi uma das comandantes mais procuradas por sequestro, massacre e extorsão. Ela ingressou nas Farc aos 16 anos "pelo abandono do Estado", segundo a própria ex-guerrilheira.

    Embora admita ter as mãos sujas de sangue, afirma não ser "essa pessoa sanguinária", que teria cortado cabeças e jogado futebol com elas –atrocidades que lhe atribuem e que ela desmente enfaticamente. Diz que agora só espera que Deus lhe dê vida para ressarcir suas vítimas.

    Leia trechos da entrevista abaixo.

    *

    O que você acha do processo de paz?

    Que deveria ter sido feito há muito tempo. Mas era agora ou nunca: as Farc estavam muito debilitadas, tinham perdido seu norte, tinham deixado de lutar pelo povo para agredir o povo. E, agora, a Colômbia tem que estar preparada para um pós-conflito muito difícil, porque este é um país burguês e as Farc querem o poder. Como não pôde pelas armas, é preciso conseguí-lo pela política. E aqui vai haver muito derramamento de sangue para conseguir o país que as Farc querem, que é um país comunista, socialista, com muitas transformações.

    Você imagina líderes das Farc na vida política?

    É isso que procuram. Mas vejo a experiência de outros grupos desmobilizados e vejo pouquinha gente na política. E os que estão, realmente não puderam mudar a vida dos combatentes rasos. Quando me desmobilizei, dizia: "Se o povo me elegesse para ser prefeita, talvez aceitasse". Hoje digo não, porque a política é corrupta. E a gente, para fazer mudanças transcendentais ou ajudar a sociedade não precisa ocupar cargos políticos.

    Após deixar a guerrilha, você se tornou cristã. Arrepende-se de alguma coisa?

    Ah, me arrependo muitíssimo. De ter entrado nas Farc, de ter me deixado levar por essa rebeldia de moça jovem, de todo o mal que fiz.

    Você tem sangue nas mãos?

    Claro que sim. Tomara que Deus me dê vida para ressarcir o dano que causei. A disciplina das Farc levava a gente a cometer erros. E me arrependo de tudo isso. Peço perdão às vítimas.

    Sabe quando a gente entende tudo isso? Quando a gente está aqui. Quando a gente está na guerra, a gente acha que tudo o que faz é certo, não sabe a dor que causa. As Farc estão me chamando de traidora desde que me desmobilizei, mas o mesmo que fiz há oito anos hoje as Farc estão fazendo. E não negociei nada com o governo. Acho que fiz o correto no momento certo.

    Você teme represálias das Farc?

    Sim. Mas vamos nos reconciliar, temos que nos reconciliar com os que chamamos de traidores e inimigos. Há oito anos virei inimiga das Farc. Passei 24 anos nas Farc pensando que o Exército era o pior e depois de desmobilizada durei mais dois anos com essa mentalidade.

    Tenho outra história bonita com as Autodefesas (Unidas da Colômbia, o principal grupo paramilitar surgido para enfrentar as guerrilhas). Eu me reconciliei com o comandante do Bloco Bananeiro, que mandou matar dois irmãos meus, que sequestrou minha filha. Hoje somos bons amigos.

    Em breve você cumprirá sua pena de justiça de transição. Ficará na Colômbia?

    Tudo depende das condições do país. Não sei se vá pedir a suspensão da pena este ano, tenho que resolver temas com a justiça comum. Mas para viver tranquila, outro país pode ser uma opção.

    Você é considerada uma sanguinária.

    Não é assim. Não decapitei pessoas, não joguei futebol com a cabeça dos mortos, não castrei –porque me atribuem tudo isso. Todos os anos da minha juventude enterrei na guerrilha. Se Deus me desse a oportunidade de ficar no país para continuar lutando para que a Colômbia não viva o que eu vivi seria muito maravilhoso.

    Quando comecei como gestora da paz, pedia aos meios de comunicação que falassem de Elda, não de Karina. Este codinome muitos não esquecem, mas eu já enterrei Karina há muito tempo.

    Você gosta de ser gestora de paz?

    Sim, assumi este compromisso em 2009. Fiz um plano que foi aceito pelo então presidente Álvaro Uribe para prevenir o recrutamento, trabalhar pela desmobilização, a reconciliação. As pessoas estão nas Farc porque vê na guerrilha sua opção de vida. Até o ano 2005 não via sentido no que uma mãe sentia quando levávamos um filho para a guerrilha.

    Quando disse ao comandante Iván Ríos que temia pela segurança da minha filha de 14 anos, ele me disse que a 'enguerrilheirasse'. Aí senti uma dor profunda e prometi não voltar a recrutar ninguém.

    A Colômbia não estará em paz até que Uribe e Santos se reconciliem?

    Se todos os colombianos vamos nos reconciliar, o presidente tem que ser o primeiro. O que acontece é que tem gente que não é capaz de perdoar. E eu digo por experiência própria e pela de outros desmobilizados. A Colômbia não está preparada para a paz. Falta que as pessoas desarmem seus corações. E é um trabalho árduo que será preciso fazer.

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