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    Cerco constante aperta fortaleza do Estado Islâmico na Líbia

    DECLAN WALSH
    DO "NEW YORK TIMES"

    01/07/2016 11h00

    Trepados em uma porta, os irmãos Juma, adolescentes, passavam a tarde sem fazer nada, preguiçosamente jogando damas, movendo pedrinhas ao redor de um quadro riscado no chão empoeirado, aparentemente alheios aos tiros e ao barulho da artilharia a alguns quilômetros de distância.

    Eles haviam fugido de sua casa em Sirte, reduto do Estado Islâmico na Líbia, três semanas antes, quando uma força de combate da Líbia, discretamente apoiada pelos EUA e pelas tropas das Operações Especiais Britânicas, varreu a cidade costeira a partir do deserto. Agora, com a intensificação do cerco, os irmãos Juma estavam fora dos confrontos, em uma chácara no extremo sul de Sirte. Sua apreensão se misturava com ondas do mais puro alívio.

    "A vida era um inferno", disse Hammad, um rapaz magricela de 16 anos com um tufo de cabelos despenteados, ao descrever as brutais regras ao longo de 18 meses sob o jugo do Estado Islâmico (EI). Cafés foram fechados, escolas mudaram de nome e garotas foram açoitadas por não cobrir o rosto, disse. Ele viu com horror como uma figura encapuzada cortou a mão de um ladrão –um homem desesperado que havia roubado um remédio. Começou a ter pesadelos depois que o EI crucificou, em um grande cruzamento, pessoas acusadas de crimes e depois deixou que seus corpos apodrecessem.

    "Eu acordava em pânico, pensando que estava sufocando", disse. Seu irmão Mohammed, 19, concordou com a cabeça. O Estado Islâmico assassinou um amigo dele, Abdullah, empurrando-o do alto de um edifício, sob a acusação de blasfêmia. Abdullah tinha 15 anos, disse Mohammed.

    O ataque a Sirte, agora em sua terceira semana, colocou o Estado Islâmico na Líbia sob uma esmagadora pressão e ameaça roubar do grupo sua maior base fora do Iraque e da Síria. A força de ataque, conduzida por milícias da cidade vizinha de Misrata e organizada sob os auspícios do governo de unidade apoiado pela ONU, encurralou o EI no centro da cidade, onde estão sob o ataque de bombas e tiros, e com sua principal rota de fuga, pelo mar, cortada.

    O cerco coincide com a recente expulsão do Estado Islâmico da cidade iraquiana de Fallujah, e, combinados, são um duro golpe para as ambições territoriais do grupo –apesar de suas retaliações com ataques devastadores contra civis. Autoridades turcas dizem suspeitar que o Estado Islâmico seja o responsável pelos atentados suicidas no aeroporto de Istambul na terça-feira, que matou pelo menos 44 pessoas.

    NA LINHA DE FOGO

    A ofensiva de Sirte aconteceu com uma velocidade de tirar o fôlego no início e diminuiu o território controlado pelo Estado Islâmico de 240 km de costa para apenas 6,5 km. Mas, desde que a batalha chegou às ruas fortemente defendidas de Sirte, o progresso vem sendo medido em metros, e o preço traduzido em vidas aumentou consideravelmente.

    Cheguei na semana passada, com um fotógrafo e um jornalista líbio que trabalha para o "New York Times" desde 2011. O primeiro obstáculo foi burocrático: negociar o labirinto de permissões oficiais necessárias para trabalhar em um país com três governos rivais, divididos por rivalidades bizantinas.

    Depois de obter a papelada e um comandante disposto a nos levar para a zona de combate, partimos à noite, descendo velozmente uma estrada repleta de restos carbonizados de veículos destruídos em ataques suicidas.

    Sirte estalava de tensão. Havíamos chegado depois do dia de luta mais sangrento até o momento, em que 36 combatentes líbios haviam morrido e mais de 150 ficaram feridos no último avanço rumo às linhas do Estado Islâmico. Ao todo, mais de 800 homens tinham sido feridos desde o início do conflito, afirmaram os médicos do hospital de campo dos arredores.

    Na estrada da praia, onde estojos de artilharia se espalhavam por uma rua vazia, combatentes estavam agachados sob um fosso de areia. De vez em quando, levantavam-se rapidamente, distribuindo balas na direção dos combatentes do Estado Islâmico em edifícios a mais de 180 metros de distância, na rua. A resposta vinha na forma de um claro estalido, seguido pelo ruído suave da bala de um franco-atirador, passando sobre suas cabeças.

    Seu comandante era Mohammed Ahmed, um homem extraordinariamente calmo que, de camiseta e chinelo, parecia vestido mais para a praia do que para a linha de fogo. Ele pediu orientações por um walkie-talkie, depois apontou para algum lugar atrás de nós, um conjunto de casas de veraneio onde o ditador líbio durante muitos anos, Muamar Kadafi, abrigava dignatários estrangeiros em visita ao país. Agora estavam esburacadas pelas balas e cheias de pichações.

    Capturar essas casas e algumas centenas de metros de estrada custou a vida de quatro homens, disse ele.

    OCIDENTE

    Drones em circulação indicaram a presença de pequenas equipes dos EUA e das forças de Operações Especiais Britânicas que, de acordo com autoridades líbias, estão usando a tecnologia de vigilância para fornecer informações sobre alvos para soldados de artilharia líbios e seu punhado de aviões de guerra envelhecidos.

    "Eles informam às forças terrestres onde avançar e onde não entrar, e coordenam os ataques aéreos", disse Mohamed Benrasali, um experiente político de Misrata.

    Essa, até agora, tem sido a dimensão da ajuda ocidental direta no campo de batalha, mesmo com os pedidos dos comandantes líbios para receber auxílios mais contundentes –munição, ataques aéreos e suprimentos médicos.

    "Aqui estamos, lutando a batalha do Ocidente contra o terrorismo", disse Ibrahim Mustafa, 29, comandante. Ele expressa um ponto de vista amplamente compartilhado por aqui. "Mas, embora o Ocidente prometa ajuda, ela nunca chega."

    As autoridades norte-americanas e seus aliados argumentam, em resposta, que têm de atuar com cautela, temerosos de que essa ajuda poderia perturbar o precário equilíbrio entre as muitas facções da Líbia e potencialmente inflamar um conflito civil complicado que envolveria uma série de países.

    Abaixo dos drones, a luta em terra é uma questão definitivamente analógica. Muitos dos milicianos líbios são combatentes em tempo parcial armados com equipamentos fabricados há décadas. Seus comandantes zombam das estimativas do Pentágono de 6.500 homens do Estado Islâmico na Líbia –ou da cifra de 8.000, dada por John Brennan, diretor da CIA, em depoimento ao Congresso em 20 de junho. Os líbios estimam que não restam mais do que 600 combatentes na cidade. Mas poucos duvidam de que os combatentes do Estado Islâmico acuados no centro de Sirte –a maioria da Tunísia, do Egito e do Sudão, de acordo com relatos informais, bem como um número menor de líbios –sejam um inimigo com determinação.

    FAMÍLIA

    Poucos quilômetros atrás das linhas de combate, o comandante que liderou o ataque em Sirte estava sentado em um quarto pequeno, diante de um transmissor de rádio e de uma grande tela com um mapa do Google Earth que detalhava o campo de batalha. Era o mês sagrado do Ramadã, então a maioria dos seus combatentes não comia durante o dia. Na escuridão da noite, depois que o jejum havia sido quebrado, o comandante descansava no pátio de seu pequeno complexo, tomava água de um cano e recebia os subordinados, que se debruçavam sobre mapas, tomavam um gole de café doce e planejavam as ações do dia seguinte.

    O comandante concordou em ser entrevistado sob a condição de manter o anonimato. Mencionou o temor de que sua família pudesse ser alvo de ataques do Estado Islâmico. Ele era, ao mesmo tempo, acolhedor e reservado –em voz alta fazia eco das reclamações populares sobre a falta de apoio do Ocidente, mas também deixou claro que considerava "cínicas" as intenções ocidentais na Líbia.

    "Estamos enviando nossos jovens para a morte, contra os terroristas, e a Europa joga partidas de futebol", disse ele, referindo-se ao campeonato de futebol que acontece neste momento.

    Embora o governo de unidade tenha forte apoio das Nações Unidas, dos Estados Unidos e de muitos países europeus, tem pouca autoridade política e, no campo de batalha em Sirte, pouco respeito. Ao invés disso, a maioria dos combatentes afirmava lutar em nome da sua cidade, da sua brigada ou do seu sangue.

    Na linha de frente oriental, perto do porto da cidade, Mohammed Haima vasculhava o panorama através de um par de velhos binóculos militares, com uma lente quebrada, em direção das linhas do Estado Islâmico a algumas centenas de metros.

    Os extremistas haviam capturado seu irmão, um combatente chamado Faisal, no verão passado, segundo afirmou. Posteriormente ele soube, por meio de um ex-prisioneiro, que Faisal tinha sido torturado: haviam-lhe arrancado as unhas.

    Há dois meses, integrantes do EI telefonaram para Haima e ofereceram trocar seu irmão por outro prisioneiro. Não houve acordo. Então agora, Haima disse, ele lutava para encontrar o irmão, ou para vingar sua morte.

    "Esses terroristas são um câncer que precisa ser exterminado", disse. "Eles fizeram meu irmão ligar para mim, para provar que ele estava vivo. Vou encontrá-lo –por ele e por nossa mãe."

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