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    Policiais dos EUA encaram duplo papel, o de vilão e vítima

    MICHAEL WILSON
    MICHAEL SCHWIRTZ
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    11/07/2016 07h00

    Em Burlington, no Estado americano de Vermont, durante a reunião de instrução para o início do turno, alguns policiais tinham lágrimas nos olhos. Assim como o chefe da polícia de Los Angeles.

    Na sala de descanso de uma delegacia de Manhattan, policiais —a portas fechadas e à vontade por estarem entre si— debateram o que viram nos vídeos de Louisiana e Minnesota, onde policiais mataram nos últimos dias dois homens negros. Para alguns, a raça tinha tido um papel. Já outros, como um policial disse, "não quiseram enxergar".

    Um detetive do Queens, que pediu para não ser identificado, comentava em voz baixa: "Isso é uma loucura. É simplesmente horroroso".

    Spencer Platt/Getty Images/AFP
    Policiais da região de Dallas participam de vigília em homenagem a agentes vítimas de francoatirador
    Policiais da região de Dallas participam de vigília em homenagem a agentes vítimas de francoatirador

    Delegacias de todos os Estados Unidos foram tomadas por discussões sobre a emboscada a policiais em Dallas, na última quinta-feira (7), que deixou cinco agentes mortos. A condenação ao atirador, identificado como Micah Johnson, foi consensual. Mas, para além disso, muitos policiais passaram a debater o que significa estar na profissão em 2016, em meio ao medo, a frustrações e ao que parece ser um crescente abismo entre aqueles que policiam e os que são policiados.

    "Nós nos segregamos", disse Charlie Beck, chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles, a uma turma de cadetes que se formou na última sexta-feira (8). "De uma hora para outra, ficou mais importante quem são seus pais e qual a cor da sua pele do que se você é americano."

    "Isso não é sobre vidas negras, vidas marrons [referência a latinos e indianos], vidas azuis [alusão à farda policial]", acrescentou. "Isso é sobre os Estados Unidos."

    A cultura policial proíbe agentes de criticarem publicamente ou fazerem sugestões sobre a conduta de seus colegas. Por essa razão, os policiais entrevistados para esta reportagem se recusaram a comentar diretamente sobre os vídeos de Louisiana e Minnesota.

    Ainda assim, algo está claro: quando surge um novo vídeo mostrando o que parece ser um erro de conduta policial, todos os agentes serão afetados.

    "Uma das preocupações que todo policial tem é que ele não pode controlar o que outros agentes fazem. Ainda assim, ele será julgado pelo que outros policiais fizeram", diz Brandon del Pozo, chefe do Departamento de Polícia de Burlington. "Dos vídeos feitos por todo o país, tentamos tirar sentido das imagens e assegurar que estamos fazendo nosso trabalho da melhor forma".

    INDIGNAÇÃO COMPARTILHADA

    E há muito ao que assistir.

    "Toda vez que paramos alguém no trânsito, as pessoas sacam seus celulares", disse George Hofstetter, presidente da Associação dos Vice-Xerifes de Los Angeles. "E as pessoas que filmam nem estão envolvidas no incidente, mas sentem que precisam filmá-lo. É como se elas pensassem: 'Não vou ficar parado do outro lado da rua, vou me tornar parte do problema'."

    Del Pozo ecoa esse sentimento. "Os agentes temem que existam pessoas buscando confrontos que possam gerar a próxima manchete em situações em que antes as pessoas entravam em acordo."

    Nem sempre os policiais concordam entre si sobre os vídeos, segundo o detetive do Queens. "Alguns dizem: 'Os policiais estavam certos'. Mas não concordo com isso." Ainda assim, ele diz que muitas pessoas se apressam a julgar após verem as imagens, "ainda tomadas pelas emoções".

    Pedro Serrano, que trabalha para o Departamento de Polícia de Nova York há 12 anos, disse que, como latino, simpatiza com a indignação sentida por membros de grupos minoritários após episódios como os de Louisiana e Minnesota.

    "Quando estava crescendo, eu odiava a polícia. Eles me assediavam sem nenhum motivo. Só porque eu estava naquela vizinhança e não era branco."

    "Hoje trabalho com pessoas que têm medo de pessoas que não são brancas, que se apressam em conclusões. Quando essa mentalidade chega à polícia, decisões muito ruins podem acontecer."

    Ao mesmo tempo, ele disse que se preocupa, principalmente depois da morte de cinco policiais por um francoatirador em Dallas, que o ódio da polícia pode levar algumas pessoas ao extremo.

    "Tudo o que ocorreu recentemente não será bom para nós porque eles dirão, basicamente, que todos os policiais são ruins. Eu sei que eles, as pessoas que estão nos protestos, não me veem como eu sou. Eles veem meu uniforme."

    Outro detetive de Nova York, que trabalha no Bronx, diz não defender policiais que apresentam má conduta e que ainda não assistiu aos últimos vídeos, mas que gravações do tipo raramente, quando nunca, mostram o cenário completo.

    "Já estive em situações em que policiais atiraram em suspeitos. Tudo acontece tão rápido. Você está a um triz da morte, entre levantar ou não da cama na manhã seguinte, ou ver seu parceiro morto. É muito mais fácil quando você pode só ver um vídeo. Uma coisa é estar ali, na hora, e outra é estar na segurança da sua sala de estar, assistindo à cena de um dispositivo eletrônico."

    A reviravolta emocional da última quinta-feira (8) —em que policiais deixaram o papel de vilões para serem vítimas em questão de segundos— lembrou um episódio ocorrido na cidade de Nova York em 2014, quando um atirador motivado pelo ódio à polícia emboscou dois agentes, Wenjian Liu e Rafael Ramos, em seu carro de patrulha. Ainda assim, para alguns, os eventos que levaram ao tiroteio em Dallas não têm precedentes.

    NOVA ERA?

    Para Joe Nocella, que trabalha há 21 anos para o Departamento de Polícia do Condado de Nassau, as mortes significaram uma nova era para a polícia. "Tiros de sniper contra policiais. Não acho que muitos imaginavam que algo assim poderia acontecer."

    Policiais veteranos, no entanto, sugerem o contrário. Alguns deles lembram de vestir seus uniformes, nos anos 1960, com medo de que pudessem ser assassinados por milícias.

    "Comecei a trabalhar no final dos anos 1970 e, naquela época, aquela situação ainda estava fresca na memória das pessoas", disse Edward David, que trabalhou como comissário da polícia de Boston. "Nós avançamos muito desde então. Mas, agora, alguns desses sentimentos parecem ter voltado."

    O detetive do Bronx coloca a situação de outro modo. "Sempre foram tempos difíceis para policiais nesta cidade. Os que trabalhavam antes de mim, nos anos 1970? Eles tinham terroristas que faziam emboscadas contra policiais. Tinham o grupo radical Weather Underground construindo bombas para explodir delegacias. Tinham os manifestantes antiguerra jogando coquetéis Molotov contra policiais."

    O detetive do Queens disse que se sentir um alvo é um sentimento comum entre homens e mulheres que vestem o uniforme. "Isso sempre passa pela cabeça, ainda que ninguém chegue ao trabalho pensando: 'Eu vou ser o cara que vai ser morto hoje'".

    Os eventos de Dallas aumentaram, no entanto, o sentimento "de que podemos literalmente ser caçados", disse. "Foi isso que aconteceu. Como um caçador, na mata com uma arma, esperando sua presa."

    Tradução de LUÍSA PESSOA

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