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    Após atentado em Nice, crianças encaram trauma e perdas

    ALISSA J. RUBIN
    LILIA BLAISE
    DO "THE NEW YORK TIMES"
    EM NICE (FRANÇA)

    18/07/2016 08h16

    Foi o primeiro e último show de fogos de artifício da vida de Yanis Coviaux, que tinha 4 anos e meio e morreu na chacina de 14 de julho. Brodie Copeland, americano de 11 anos que visitava a cidade, também morreu.

    Haroun El Kamel, 12, sobreviveu, mas talvez nunca mais encare fogos de artifício com tranquilidade. Laura Borla, 14, foi ver a queima de fogos com sua mãe e sua irmã gêmea, mas se separou delas no meio do caos. Dias mais tarde, sua família ainda a procura.

    O motorista que jogou seu caminhão contra uma multidão durante a queima de fogos que acontecia em comemoração ao Dia da Bastilha, em Nice, matou pelo menos 84 pessoas e feriu centenas de outras.

    O grande número de crianças no local conferiu um caráter especialmente brutal a esse ataque e enfatizou sua crueldade indiscriminada, como foi o caso do atentado em março em um parque no Paquistão ou o recente massacre de famílias que festejavam o fim do Ramadã em Bagdá.

    Pelo menos dez crianças foram mortas em Nice e pelo menos 35 outras ficaram feridas. Muitas foram separadas de seus pais no meio do caos, e algumas delas, sem dúvida, viram e ouviram coisas que talvez carreguem por muito tempo.

    FESTA FAMILIAR

    Ninguém que estava na praia ou na avenida a beira-mar de Nice poderia ter imaginado que aquela noite teria um final tão tenebroso. Assistir à queima de fogos de 14 de julho é um ritual familiar anual na cidade, um dia para fazer piquenique na praia —e, quando não resta mais lugar na praia, para estender toalhas de mesa no meio da avenida conhecida há mais de 150 anos como a Promenade des Anglais. Desse ponto, as pessoas têm uma ótima vista do mar e do extravagante show de fogos de artifício.

    "Você precisa levar seus filhos, porque, se não o fizer, vai pagar por isso pelo resto do ano, já que todos os amigos deles terão ido", explicou Raja El Kamel, 43, mãe de Haroun, que foi assistir à queima de fogos com seu filho, uma amiga da Suécia e os dois filhos desta.

    Numa cidade que adora uma festa, a queima de fogos é especialmente apreciada porque reúne a comunidade inteira: cristãos e muçulmanos, religiosos e seculares, mas, sobretudo, franceses. A presença de turistas em grande número torna o ambiente ainda mais festivo.

    Yanis, de 4 anos e meio, e seus pais, Mickael e Samira Coviaux, nunca antes tinham assistido à queima de fogos. Pai e mãe são caminhoneiros e vivem em Grenoble. Foi a primeira vez que foram assistir aos fogos no mar Mediterrâneo em família, contou uma tia de Yanis, a estudante de direito Anais Coviaux, que saiu de Paris para dar apoio a seu irmão e cunhada depois da morte do garotinho.

    "As crianças estavam brincando juntas e estavam de costas para a rua", contou. "Só ouviram o caminhão um segundo antes de serem atingidas. O caminhão subiu na calçada, batendo em Yanis e na mãe de uma das outras crianças que estavam com eles." A mãe também morreu.

    Não havia onde obter primeiros socorros por perto. Mickael Coviaux pegou seu filhinho no colo e andou com ele até encontrar uma pessoa em um carro que concordou em levá-los ao hospital. Quando passaram por alguns bombeiros, pararam e pediram que tentassem reanimá-lo. Mas o menino já estava morto.

    "Ele era o único neto de meus pais, o único neto da família", disse Anais Coviaux, falando baixinho. Ela explicou que seu irmão e cunhada estavam consternados demais para falar. "Yanis adorava as pessoas", disse. "Ele gostava especialmente dos domingos, quando a família se reunia, e ele dizia 'Mamie e Papi, vamos fazer uma festa'."

    Mais tarde, Mickael Coviaux disse em um e-mail: "Cada pessoa que Yanis conheceu em sua vida curta se apaixonou por ele."

    A família inteira se reuniu no calçadão no sábado para olhar para a última paisagem que Yanis viu em sua vida.

    "Foi importante para nós virmos para o lugar onde ele morreu, para lhe fazer uma homenagem, porque não conseguíamos nos despedir dele", falou Anais Coviaux. "Deixamos uma foto dele e flores."

    Um enfermeiro do setor de emergências do hospital Pasteur, Mejdi Chemakhi, atendeu várias crianças, incluindo um menino e uma menina que chegaram ao hospital sem seus pais. O garoto tinha 4 anos, e sua irmã, 6.

    Chemakhi contou que o menino falava em voz inexpressiva, aparentando estar em choque.

    "Minha mamãe morreu, mas meu pai ainda está vivo", o menino repetiu várias vezes. Finalmente, ainda com o rosto sem expressão alguma, o garoto falou: "Estou cansado, quero dormir. Não tenho roupas."

    O enfermeiro contou: "Eu o peguei no colo e tentei consolá-lo. Você não sabe o que mais fazer nessas situações. É importante tentar transmitir um pouco de segurança às crianças."

    Mais tarde naquela noite, um homem ferido foi levado ao hospital e disse a Chemakhi que tinha perdido a mulher e não conseguia encontrar seus filhos, um menino e uma menina. Chemakhi percebeu que os três formavam uma família e ajudou a promover o reencontro deles.

    HOMENAGEM

    Na Promenade des Anglais, no sábado, flores e mensagens foram deixadas em vários pontos, às vezes a cada poucos metros de distância, assinalando os lugares onde pessoas tinham morrido.

    Alguns pais e mães que não tinham ido à queima de fogos levaram seus filhos para ver os memoriais, como maneira de exprimir sua união com a comunidade e assinalar que não se deixarão vencer pelos terroristas.

    Nour Hamila, natural de Nice que se converteu ao islamismo, fez questão de levar seus três filhos, de 8, 5 e 3 anos, ao local. "Falei a eles que não tivessem medo, porque o que os terroristas querem é que tenhamos medo. Temos que dar apoio uns aos outros", disse, enquanto seu filho Mohamed, 5, deitava flores em um dos memoriais.

    MEMÓRIA MARCADA

    É mais difícil para as crianças que testemunharam as mortes.

    Para o filho de Raja El Kamel, Haroun, de 12 anos, o momento ficou marcado a fogo em sua memória.

    "Vimos o caminhão branco se aproximando de longe", comentou Kamel. Ela se recorda de ter pensado que o caminhão não deveria estar ali, porque a rua estava fechada ao trânsito de veículos.

    Haroun e os filhos de sua amiga, de 12 e 9 anos, estavam rindo e brincando. Então o motorista acelerou e começou a desviar de um lado para o outro da avenida, "jogando o caminhão contra as pessoas", disse.

    Kamel conseguiu de alguma maneira empurrar seu filho e se jogar sobre a calçada. Então o caminhão passou por eles, e ela só se lembra de seu filho lhe dizendo "Mãe, mãe, você precisa vir ajudar as pessoas".

    Ela olhou para a rua e reconheceu uma vizinha ajoelhada ao lado de seu marido e gritando o nome dele. Mandou seu filho ir com a amiga deles e as outras crianças.

    Tudo estava em silêncio. "Havia apenas aquele vento terrível", Kamel recordou. "Olhando para a esquerda, você via corpos espalhados; olhando para a direita, mais corpos. Havia carrinhos de bebê e pessoas tentando socorrer outras pessoas."

    Depois de tentar consolar sua vizinha, ela procurou seu filho, mas as pessoas estavam correndo em fuga desabalada e tudo era caos. Horas mais tarde, quando encontrou seu filho e sua amiga, Haroun perguntou: "Mamãe, você conseguiu salvar o homem?"

    Kamel respondeu que os serviços de emergência o tinham socorrido.

    "As crianças não têm visão global, sabe?" disse. "Haroun viu todos aqueles corpos, mas, para ele, era a pessoa aos seus pés que precisava ser salva."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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