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    Opinião

    Estratégia de 'lei e ordem' de Trump pode se provar erro de foco na eleição

    DAVID BROOKS
    DO "NEW YORK TIMES"

    23/07/2016 02h30

    Seja bem-vindo a um mundo sem regras (quero que você leia este parágrafo na voz superassustadora de um narrador de trailer de filme). Bem-vindo a um mundo onde famílias são metralhadas por imigrantes ilegais, onde policiais morrem nas ruas, onde muçulmanos saqueiam e atacam inocentes e ameaçam nosso próprio modo de vida, onde o medo da morte violenta se oculta em cada coração humano.

    Nesse mundo, às vezes um cavaleiro das trevas se eleva. Não é preciso admirá-lo, mas você precisa dele. É sua força e sua voz num mundo sombrio, corrupto e perverso.

    Esse tem sido o argumento de quase todos os demagogos desde a aurora dos tempos. Em 1806, Aaron Burr alegou que a Espanha ameaçava os EUA. Alexander Mitchell Palmer exagerou a "ameaça vermelha" dos comunistas em 1919, e Joe McCarthy fez o mesmo em 1950.

    E foi dessa natureza o argumento sobre lei e ordem apresentado por Donald Trump em Cleveland. Foi uma mensagem distópica que encontrou um público aberto a ouvi-la.

    Será que vai funcionar?

    Bem, esse medo se alimenta do sentimento de perda que foi o tema dominante dessa convenção. Ouvimos os depoimentos de várias mães que perderam filhos.

    Em meio à coleção de ansiedades que afligem os EUA, esse argumento se concentra sobre a ansiedade mais visceral de todas: o medo da violência e da criminalidade.

    E, finalmente, uma campanha baseada na defesa da lei e da ordem convoca os traços de personalidade autoritária que Donald Trump possui. Antigamente, o Partido Republicano tinha aspirações pautadas pela ética bíblica da caridade particular, generosidade, humildade e fidelidade. A convenção de Mitt Romney foi agraciada com relatos sobre suas gentilezas.

    GLADIADOR

    Trump substituiu os compromissos bíblicos por uma lógica de gladiador. Tudo gira em torno da conquista, da supremacia. Esta foi a convenção do "prendam Hillary". Uma campanha da lei e da ordem não pede aos eleitores que gostem de Trump e dos republicanos, assim como eles não gostavam de Richard Nixon em 1968.

    Por outro lado, há bons motivos para pensar que o foco sobre lei e ordem é um engano importante, que ele exagera o impacto do momento atual, com Baton Rouge, Dallas e Nice, e que não será o foco correto para novembro.

    Em primeiro lugar, é baseado numa falsidade. Os índices de criminalidade caem praticamente sem parar há 25 anos. Os de homicídios ligados a gangues em certas cidades subiram recentemente, mas nos EUA como um todo a situação é de muito mais segurança hoje do que uma década atrás. No primeiro semestre de 2015, por exemplo, o número de incidentes com armas de fogo em Nova York e Washington chegou ao patamar histórico mais baixo.

    Trump fala em imigrantes ilegais que matam nossos filhos. Entre 2010 e 2014, só 121 pessoas libertadas de custódia imigratória cometeram um homicídio depois de soltas; isso é cerca de 25 por ano.

    Cada morte é lamentável. Mas, num país de 324 milhões de habitantes, só 55 policiais por ano morrem em decorrência de um crime. O número de mortes de agentes caiu 24% entre 2005 e 2015.

    As ansiedades principais no país não estão ligadas à criminalidade ""são econômicas e sociais. Trump foi nomeado candidato graças a seu suposto tino para os negócios, não porque seja xerife. Ao focar seu argumento tanto sobre lei e ordem, ele deixa uma brecha de um quilômetro de largura para Hillary Clinton.

    Na convenção democrata na Filadélfia, ela certamente falará do problema econômico. Trump poderá parecer estranhamente desligado da realidade.

    Mas, se Trump está desconectado do país e não se interessa por nada a não ser ele mesmo, também está desligado de seu partido. Ele não só está mudando seu partido quanto dissolvendo-o.

    Um partido político normal conta com uma máquina de profissionais que trabalham nela há bastante tempo e sabem fazer seu trabalho. Mas é como se essas pessoas não existissem. Esta foi a convenção mais loucamente mal organizada em muito tempo.

    Um partido normal é unido por um sistema coerente de posições e crenças. Durante décadas, o Partido Republicano representou, no exterior, uma ordem internacional liderada pelos EUA e voltada para o futuro, e, em casa, o capitalismo democrático com pequena participação do governo na economia.

    Trump dizima isso e outras coisas que os republicanos defendiam e representavam: a Otan, a reforma dos benefícios às quais os cidadãos têm direito, o conservadorismo compassivo.

    A agenda política de Trump, se existe, é feita de vários recuos defensivos vagos: construir uma barreira, proibir a entrada de muçulmanos, isolar-se do mundo.

    Lei e ordem é um tema estranho para um candidato que irradia conflito e desordem. Algumas crianças ricas são descuidadas ""quebram as coisas, e então outros são obrigados a varrer os cacos.

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