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    'Vi seu corpo cair', relata fotógrafo sobre morte de jornalista líbio a tiros

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO
    ENVIADA ESPECIAL A SIRTE (LÍBIA)

    24/07/2016 02h23

    Primeiro veio o zunido das balas da metralhadora. O fotógrafo André Liohn se virou e viu quando o jornalista líbio Abdul Qader Fassouk foi atingido na cabeça e caiu.

    Logo o chão ficou coberto de sangue. Os dois haviam chegado juntos ao front em Sirte para registrar a ofensiva das milícias de Misrata contra as forças do Estado Islâmico que dominam a cidade desde agosto de 2015.

    Acompanhavam um grupo de guerrilheiros quando escutaram tiros. Um deles atingiu a lataria de um carro ao lado e todos, menos Fassouk, deitaram-se, pois entenderam que um franco-atirador do EI tentava acertá-los.

    Ficaram ali por 15 minutos quando, longe, viram um guerrilheiro ser atingido e levado pelos companheiros.

    Fassouk e Liohn correram para fotografar o resgate. Um guerrilheiro do EI atirava com metralhadora do alto de um muro, e os dois jornalistas se separaram para se abrigarem atrás de carros blindados.

    Fassouk estava apoiado no veículo, filmando quando uma bala atingiu sua cabeça.

    O corpo do jornalista caiu, escorrendo muito sangue da nuca. Liohn começou a gritar seu nome e correu ao seu encontro.

    Fassouk estava deitado em uma poça de sangue, os olhos vidrados, a boca aberta. Em uma das mãos, ainda segurava a câmera.

    Ele era um jornalista popular na Líbia. Trabalhava para o canal de TV Al Raed. Suas fotos das operações em Sirte foram publicadas pelo jornal "The New York Times" e pela agência Reuters.

    Em 2012, ele e outro jornalista líbio foram sequestrados em uma cidade vizinha, Ben Walid, enquanto faziam uma reportagem sobre grupos que ainda apoiavam o regime do ditador Muammar Gaddafi mesmo após sua morte. A prisão dos dois jornalistas causou comoção nacional, e as tropas de Misrata atacaram a cidade para libertá-los.

    Em 2011, quando cobria a revolta que levou à queda de Gaddafi, Fassouk foi atingido e ficou em estado crítico.

    "Nós nos conhecemos em 2011, quando Misrata ficou cercada pelas forças de Gaddafi. Logo nos tornamos amigos. Nosso reencontro, na quinta (21), foi caloroso, nos abraçamos e conversamos", diz Liohn.

    "Fassouk não falava bem inglês e eu não falo bem árabe, mas isso nunca impediu que nos entendêssemos". Pequeno e magro, o jornalista tinha 31 anos e uma filha de dois anos. "Era generoso e atencioso, em mais de uma vez que estive na Líbia ele fez questão de ajudar", lembra o fotógrafo.

    Fassouk, como a maioria dos repórteres líbios e grande parte dos milicianos, não usava capacete nem colete a prova de balas. Frequentemente ameaçados por grupos armados, os jornalistas locais têm pago com a vida para documentar a guerra civil líbia.

    Na quinta (21), 22 pessoas morreram e 127 ficaram feridas em Sirte –entre elas o jornalista líbio Mohammed Agoub, que pisou em uma mina terrestre e teve ferimentos graves nas pernas e nos braços.

    Cerca de 30 milicianos do EI teriam morrido. Desde 5 de maio, início da operação, 300 milicianos de Misrata morreram e mais de mil ficaram feridos.

    "Ele estava sempre sorrindo", disse Ahmed Shlak, amigo de Fassouk. Os dois se viram pela última vez na terça (19) em um café em Misrata onde muitos se reúnem para fumar narguilé. "Conversamos sobre a guerra e pedi que tomasse cuidado. Ele disse: 'Não se preocupe, Alá está conosco'".

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