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    Alvo de atentado, Nice vê comunidade muçulmana segregada e radicalizada

    FERNANDA GODOY
    ENVIADA ESPECIAL A NICE

    24/07/2016 02h14

    Fernanda Godoy/Folhapress
    NICE, FRANCA, 17-07-2016 - Muculmanos rezam pelos mortos no atentado de Nice na mesquita En-nour. Credito:Fernanda Godoy/Folhapress
    Muçulmanos rezam pelos mortos no atentado terrorista ocorrido em Nice na mesquita En-nour

    Traumatizada pelas 84 mortes de 14 de julho, Nice é uma cidade dividida pelo ódio religioso e pelo medo de novos atentados terroristas.

    "É um momento muito difícil, com aumento do medo e da raiva. Muita gente nos ligou após o atentado agitada, atordoada", relata a psicoterapeuta Amélie Boukhobza, da associação Entr'Autres, que recebe auxílio estatal para combater a radicalização.

    Um dos fenômenos preocupantes visto desde osatentados que deixaram 130 mortos em Paris em novembro é o sentimento de legitimação da violência entre os jovens radicais islâmicos, com o despertar de novas vocações.

    O sociólogo Raphaël Liogier define essa geração como "ninjas do islã": radicais que não necessariamente passaram por treinamento nem têm ligação direta com a facção terrorista Estado Islâmico, como o tunisiano Mohamed Lahouaiej Bouhlel, autor do ataque em Nice.

    "O que é inquietante é a desprofissionalização do terrorismo. O marketing do EI funcionou para recrutar criminosos que querem se converter em heróis", disse à Folha o autor de "A Guerra de Civilizações Não Acontecerá - Coexistência e Violência no Século 21" (inédito no Brasil).

    Os ninjas, diz Liogier, são jovens de origem magrebina que se sentem discriminados pela sociedade de Nice e "podem ter problemas de narcisismo, como ocorre com muitos criminosos comuns".

    "O combate em nome da religião é uma forma de realizar esse desejo narcisista."

    SALTO

    Amélie Boukhobza diz que foi registrado nos últimos dias aumento no número de denúncias de radicalização recebidas pela Entr'Autres, que tem 30 profissionais em Nice, Paris, Marselha e Lyon.

    Segundo a psicoterapeuta, o processo de radicalização dos muçulmanos na França leva anos. A porta de entrada é o conflito de identidade, a dificuldade de integração à sociedade francesa.

    Editoria de arte/Folhapress
    Atentado em Nice - arte

    Desde 2004, quando o governo francês proibiu o uso do véu nas escolas públicas, crescem os números de escolas muçulmanas. Em Nice, desde 2015, o movimento de saída da escola pública ganhou força. "É um fenômeno novo e enorme. Estão pondo as crianças em ruptura com a sociedade francesa", diz.

    Os moradores muçulmanos, já raros nas zonas turísticas de Nice, estão mais segregados após o atentado.

    "Nice é uma das cidades da França onde há mais distância social entre pobres e ricos. É a capital simbólica da Riviera, uma cidade cosmopolita, cheia de milionários de um lado e de gente pobre e frustrada impelida para fora do centro de outro", diz Liogier.

    Poucos muçulmanos circulam pela Promenade des Anglais desde o atentado do dia 14, quando o tunisiano Bouhlel atropelou com um caminhão a multidão que assistia ali os festejos da Queda da Bastilha, o feriado nacional.

    Nice abriga cerca de 50 mil muçulmanos entre seus 350 mil habitantes. Diante da notícia de um atentado, essas famílias temem que possam albergar um algoz, mas, também, vítimas. Estima-se que um terço dos mortos e feridos em Nice fosse muçulmano.

    A família da marroquina Fatima Charrihi, 62, a primeira a ser atropelada pelo terrorista, integra a comunidade da mesquita En-nour (a luz, em árabe), na zona oeste de Nice. Na noite de domingo (17), antes que os corpos tivessem sido enterrados, cerca de 300 pessoas se reuniram na mesquita para rezar.

    Com a voz trêmula, uma mulher de niqab (o véu que só deixa os olhos à mostra) pediu uma reflexão. "Estávamos lá porque o 14 de julho é uma festa popular, uma festa de franceses e não franceses. Não vivemos em um mundo paralelo", disse ela.

    O imã da En-nour, Mahmoud Benzamia, que visitou vítimas nos hospitais com outros líderes, afirmou à Folha que sua comunidade vive um "momento de dor e medo".

    O ex-prefeito de Nice Christian Estrosi, do partido de centro-direita Republicanos, tentou impedir judicialmente a construção da mesquita, acusando seus líderes de radicalismo.

    O impasse só foi decidido pelo Conselho de Estado.

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