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    Minha História

    Evan Young, 45

    Militar trans conta trajetória de abusos e superação nos EUA

    Depoimento a
    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE NOVA YORK

    08/08/2016 02h00

    RESUMO Em junho, o governo Obama anunciou o fim do veto a militares que passaram por cirurgia de readequação de sexo —os que o fizerem terão a operação paga pelo Pentágono. A decisão foi celebrada por Evan Young, 45, presidente da Associação de Veteranos Transgênero. Ele entrou no Exército em 1989 e se aposentou 14 anos depois como major. No serviço militar, ainda no corpo feminino, sofreu assédio e ameaças.

    Divulgação
    Evan Young, 45, presidente da Associação de Veteranos Transgênero
    Evan Young, 45, presidente da Associação de Veteranos Transgênero dos Estados Unidos

    *

    Depois da primeira vez que minha mãe pôs um jeans em mim, me recusei a usar vestido. Na infância, sempre me chamaram de "moleque". Eu gostava de ser tão durão quanto os outros garotos.

    Percebi quem eu era bem novo: um indivíduo forte, que jamais encarnaria o estereótipo da garota caipira, descalça e grávida do Arkansas.

    Minha família me amava independentemente de como eu agisse. No colégio, era tímido, só tirava A. Mas fazia esportes e era competitivo. Lá pelos 20 anos, comecei a perceber minha sexualidade e abracei o rótulo de lésbica. O que dizer? Amo mulheres.

    Quis entrar na Academia Militar [que forma oficiais], mas estraguei meu joelho num acidente e me tornei inelegível para a instituição.

    Decidi servir meu país de qualquer jeito possível, então me alistei. Era um soldado muito batalhador. Ganhei prêmios e, quando virei sargento, uma bolsa de estudos, o que me permitiu ter um diploma universitário [formou-se em inglês, numa universidade estadual da Louisiana].

    Fora do Exército, não me relacionava com os outros militares. Tinha amigos fora do Exército que eram gays ou lésbicas. Meus namoros nunca duravam. Eu servia, por um período de dois anos, em pontos diferentes do país.

    Não podia pedir para uma parceira largar tudo e vir comigo, não sem benefícios como plano de saúde ou preferência para o companheiro de um militar conseguir cargo público. Tudo isso meus colegas héteros tinham para o marido ou a mulher.

    Alguns militares me tratavam muito mal. Aqueles que desconfiavam que eu era lésbica usavam isso contra mim. Sofri abusos sexuais. Não gosto de entrar em detalhes, me traz más lembranças.

    Eu não podia falar nada, ou eles me denunciariam [as Forças Armadas baniam homossexuais até 2011].

    Fui assediado em todos os níveis da carreira. O primeiro aconteceu no treinamento básico. Um sargento queria que eu fizesse sexo oral nele em troca de um doce. Me recusei. Não foi o único superior que me pediu favores sexuais.

    Por sorte, eu era um soldado excelente, então isso garantiu com que fosse promovido mais rapidamente. Tive um marido de mentira por um tempo. Ele precisava do plano de saúde, e eu, de um disfarce. A gente não morava junto, mas era casado no papel.

    Mas ele piorou e acabou morrendo um ano depois. Era um bom amigo, foram tempos tristes.

    Durante a maior parte da minha carreira, eu vivia longe da base para não correr o risco de cruzar com outros soldados.

    Sofri com crises de ansiedade e depressão. Chorava incontrolavelmente, o coração disparava. Ainda acontece quando lembro de tudo —como agora, falando com você. Ou ao pensar que teria que "desfazer" minha condição para ser aceito num trabalho.

    Fiquei em êxtase quando soube do fim do "don't ask, don't tell" [a política "não pergunte, não conte", que permitia gays militares desde que eles silenciassem sobre a orientação sexual].

    Mas minha alegria morreu rapidinho: me toquei que ela não se aplicava aos trans. Foi nessa época que percebi minha identidade de gênero. Eu era um homem no armário.

    Deixei o Exército por motivos médicos sem relação com minha transição. Mas fiquei aliviado de poder operar sem medo do preconceito. Foi só em 2010, com 40 anos, que aprendi que uma pessoa podia readequar seu sexo.

    Desde os cinco anos já sonhava em ser garoto. Operei em cima [extração das mamas] e embaixo [remoção de órgãos femininos e construção da genitália masculina a partir do clitóris]. Ainda preciso de cirurgias reparatórias, mas meu plano de saúde militar não cobre essas despesas.

    Antes, tive minhas gêmeas por fertilização in-vitro. Elas têm nove anos e adoram basquete, futebol e nadar. Quando minha voz começou a engrossar, com os hormônios, elas perguntaram se podiam me chamar de papai. Foi uma transição natural. Elas me amam incondicionalmente.

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