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    Perfil de Trump testa subjetividade de jornalistas na cobertura das eleições

    JIM RUTENBERG
    DO "NEW YORK TIMES"

    08/08/2016 20h28

    Se você é um jornalista na ativa e acredita que Donald Trump é um demagogo que alimenta as piores tendências racistas e nacionalistas do país, que ele bajula ditadores antiamericanos e que seria perigoso confiar a ele o controle dos códigos nucleares dos Estados Unidos, de que jeito faria a cobertura das notícias sobre ele?

    Porque, se você acredita nessas coisas, tem que jogar fora as regras que o jornalismo americano segue há quase meio século (senão mais tempo) e fazer a cobertura de um jeito que você nunca abordou nada em sua carreira. Se você vê um governo Trump como algo potencialmente perigoso, seus textos vão refletir isso.

    Joe Raedle - 3.ago.2016/Getty Images/AFP
    O candidato Donald Trump discursa durante evento de campanha em Daytona, Flórida, no último dia 3
    O candidato Donald Trump discursa durante evento de campanha em Daytona, Flórida, no último dia 3

    Você chegará mais perto do que jamais chegou de fazer um jornalismo de oposição. Isso é terreno incômodo e desconhecido para qualquer jornalista da grande imprensa que já conheci –que não seja um colunista–, e, pelos padrões normais, é indefensável.

    Mas a pergunta que todo o mundo tenta responder é a seguinte: será que os padrões normais se aplicam aqui? E, se não, o que deve tomar seu lugar?

    Cobrir Trump como um candidato anormal e potencialmente perigoso é mais do que um simples choque ao sistema jornalístico. Isso corre o risco de entregar uma vantagem de mão beijada à sua adversária, a avessa a coletivas de imprensa Hillary Clinton, que deveria ela própria atrair uma cobertura jornalística muito mais dura.

    Hillary demonstrou isso novamente na semana passada ao alegar no "Fox News Sunday" que James Comey, o diretor do FBI, havia declarado que ela falara a verdade em suas respostas sobre sua decisão de usar um servidor de e-mail privado para comunicações oficiais do Departamento de Estado. É uma interpretação fortemente enganosa de um relatório do FBI, algo que chama a atenção para várias falsidades contidas nas explicações públicas dadas pela candidata.

    De um modo geral, fazer isso atrapalha a cobertura equilibrada, essa forma idealista de jornalismo com "J" maiúsculo que sempre fomos ensinados a procurar fazer.

    Mas vamos encarar a verdade: o equilíbrio saiu de férias desde que Trump pisou em sua escada rolante dourada da Trump Tower no ano passado para anunciar sua candidatura.

    Nas primárias e nos caucus, o desequilíbrio foi vantajoso para ele, dominado pela estatística arrasadora da temporada: seus quase US$ 2 bilhões em divulgação gratuita pela mídia foram mais de seis vezes mais do que recebeu seu rival republicano mais próximo.

    Dá para vê-lo assim que começam os jornais televisivos diários, no set do programa "Morning Joe" da MNSBC. Alguns meses atrás, jornalistas que cobrem a mídia descreviam uma relação amigável demais entre Trump e os apresentadores do programa, Joe Scarborough e Mika Brzezinski.

    Mas na quarta-feira (3) vimos Scarborough perguntar ao ex-diretor da CIA Michael V. Hayden se existem salvaguardas para assegurar que, "se Trump se irritar, ele não possa lançar uma arma nuclear", em vista da percepção de que ele talvez não seja "o sujeito mais estável".

    Então Scarborough compartilhou uma conversa alarmante que afirmou ter tido com um "especialista em política externa" que dera a Trump um briefing sobre segurança nacional. "Três vezes Trump perguntou sobre o uso de armas nucleares", disse Scarborough, descrevendo uma das perguntas como tendo sido "já que as temos, por que não podemos usá-las?"

    Falando comigo mais tarde, Scarborough, que é republicano, disse que não tinha pensado em compartilhar o caso com a plateia até o momento em que o fez.

    "Quando aquela discussão veio à tona, eu não tive escolha, na realidade", ele disse. "Era algo que acho que os americanos precisavam saber."

    IRRACIONAL

    Trump refutou o relato feito por Scarborough. (Ele disse ao "New York Times" em março que utilizaria armas nucleares como "absolutamente o último recurso". Mas quando o apresentador da MSNBC Chris Matthews o questionou sobre a possibilidade de utilizá-las, Trump indagou: "Então por que nós as estamos produzindo?")

    Scarborough, que frequentemente critica o viés liberal da mídia, disse estar preocupado pelo fato de Trump estar ficando cada vez mais errático e fez uma pergunta retórica: "Até que ponto é preciso ser imparcial quando um lado é simplesmente irracional?"

    Scarborough trabalha com jornalismo de opinião. É muito mais complicado para repórteres convencionais tratarem o debate político deste ano como sendo um embate entre "normal" e "anormal", como o descreveu recentemente o editor-chefe do Vox, Ezra Klein.

    Em certo sentido, é justamente isso que os jornalistas estão fazendo. E é inevitável. Porque Trump está conduzindo sua campanha de maneiras que não vemos normalmente.

    Nenhum jornalista vivo já viu o candidato presidencial de um partido grande condicionar financeiramente a defesa pelos EUA de seus aliados na Otan, brigar abertamente com a família de um soldado americano morto em guerra ou sugerir à Rússia que interfira em uma eleição presidencial americana, invadindo os e-mails de sua adversária (Trump diria mais tarde que a mídia não entendeu que a sugestão tinha sido brincadeira).

    Jim Watson/AFP
    Manifestantes contra Trump protestam durante a convenção republicana, em Cleveland, Ohio, em julho
    Manifestantes contra Trump protestam durante a convenção republicana, em Cleveland, Ohio, em julho

    E, embora apelos cifrados ao racismo ou nacionalismo não constituam novidade, defesas abertas da proibição temporária de entrada de muçulmanos nos Estados Unidos e o questionamento à imparcialidade de um juiz federal com base em sua ascendência mexicana são uma novidade.

    "Se temos um candidato que expressa boa vontade em relação a um de nossos adversários mais ameaçadores, que joga por terra todas as normas de como nossos líderes tratam as famílias cujos filhos morreram por nosso país, que propõe que sejam repensadas as alianças que guiam nossa política externa há 60 anos, isso exige cobertura –cobertura ampla e agressiva", disse Carolyn Ryan, a editora sênior de política do "New York Times".

    "Não quer dizer que não vamos fazer uma cobertura vigorosa das questões ligadas a Hillary Clinton –estamos fazendo isso e vamos continuar a fazer."

    CONTROVÉRSIAS

    Pode-se dizer sobre Hillary, sem o risco de ser parcial, que nenhum candidato presidencial até hoje conseguiu ser escolhido por um dos principais partidos após uma investigação pelo FBI sobre sua utilização de um servidor privado de e-mail para transmitir, em alguns casos, informações de segurança nacional ultrassecretas. Isso exige ser investigado, juntamente com todo o histórico de atuação da candidata. Mas os dois candidatos não produzem notícias no mesmo ritmo.

    "Quando controvérsias são alimentadas, é nossa obrigação noticiar o assunto", disse o editor-chefe do "Washington Post", Cameron Barr. "Se um candidato o está fazendo de modo mais agressivo e consistente que o outro, esse é um desequilíbrio, com certeza." Mas ele acrescentou: "não é um desequilíbrio que nós criamos, é um que o candidato está criando."

    Parte disso já estava embutido nas duas candidaturas. Hillary está presente há tanto tempo que os eleitores podem visualizar mais facilmente como pode ser um governo da democrata. E dizer que ela ainda não foi alvo de um exame atento da mídia é ignorar todos os "gates" ligados ao seu sobrenome que já existem: Travelgate, Whitewatergate e agora o Emailgate.

    Trump é um novato político que passou sua vida profissional administrando uma empresa privada e protagonizando um reality show de sucesso. Ele está longe de ser um desconhecido, mas há muito que ainda não sabemos sobre suas posições e sua familiaridade com as questões políticas mais importantes. Suas posições seriam notícias importantes mesmo que não parecessem com tanta frequência romper com o consenso político instalado há décadas (como fazem).

    MOMENTO 'MURROW'

    A reação da mídia a tudo isso tem sido forte, com algo que o "Columbia Journalism Review" descreveu como "um momento Murrow" (em referência ao jornalista Edward Murrow, que foi abertamente contra a campanha anticomunista promovida pelo senador Joseph MacCarthy).

    Não é incomum ver reportagens que descrevem Trump como sendo "errático", sem atribuir a descrição a um adversário dele. As listas de falsidades que ele já disse continuam a crescer, chegando a números espantosos, superando de longe as de Hillary.

    No último domingo, Brian Stelter, o apresentador do programa "Reliable Sources", da CNN, convocou jornalistas e formadores de opinião a contestar a afirmação "perigosa" de Trump de que o sistema eleitoral foi manipulado para ser desfavorável a ele. Deixar de fazê-lo seria falta de patriotismo, disse Stelter.

    Embora existam vários exemplos de críticas feitas a Trump este ano pela mídia conservadora, o candidato e seus partidários estão reiterando acusações de viés liberal que vêm sendo feitas há tempos. "A mídia está tentando nocautear Donald Trump", declarou Rush Limbaugh na semana passada.

    Muitos partidários ferrenhos de Trump com certeza enxergam as coisas sob essa ótica. Isso vai apenas agravar a visão já pouco elogiosa que eles têm da mídia noticiosa, que em um primeiro momento deixou de reconhecer a força das queixas deles e, portanto, deixou de reconhecer a seriedade da candidatura de Trump.

    Mas ser levado a sério é assim. Como me disse Ryan, a candidatura de Trump é "extraordinária e rompe precedentes", e "fazer de conta que não o é seria faltar com a verdade para os leitores".

    Também seria abdicar do dever mais solene do jornalismo político: investigar como serão os candidatos no exercício do cargo mais poderoso do mundo.

    Talvez isso nem sempre pareça ser justo com Trump ou seus partidários. Mas o jornalismo não deve se pautar pela definição de justiça feita por uma campanha ou por outra.

    Cabe ao jornalismo ser fiel aos leitores e espectadores e ser fiel aos fatos, de uma maneira que possa resistir ao julgamento da história. Fazer qualquer coisa menos que isso seria indefensável.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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