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    Relatório confirma que ações da polícia americana são racistas

    DO "NEW YORK TIMES", EM BALTIMORE (EUA)

    11/08/2016 07h30

    Como negro que sempre viveu em Baltimore, Ray Kelly já foi parado pela polícia mais vezes do que consegue contar.

    Desde a morte de Freddie Gray, Kelly, que é organizador comunitário e tem 45 anos, procurou documentar a injustiça policial. Ele sempre previra que uma investigação do Departamento de Justiça comprovaria a existência de um padrão de discriminação racial da polícia.

    Mesmo assim, Kelly se assustou com as conclusões do departamento, apresentadas em um documento contundente que inclui dados detalhados sobre como a polícia de Baltimore há anos sistematicamente para, revista e prende moradores negros da cidade. "Ouvir as cifras concretas me deixou atônito", ele comentou.

    Em uma estatística chocante após a outra, o relatório do Departamento de Justiça —do qual o "New York Times" obteve uma cópia na terça-feira (9)— veio confirmar a experiência de Kelly e inúmeros outros residentes de bairros afro-americanos pobres, que encaram a polícia como uma força de ocupação.

    RELATÓRIO

    O documento de mais de 160 foi apresentado nesta quarta-feira (10) em uma entrevista coletiva na sede da prefeitura da cidade.

    Em Baltimore, onde 63% da população é negra, o Departamento de Justiça descobriu que 91% das pessoas detidas por delitos discricionários, como "negar-se a obedecer" ou "transgressão", foram afro-americanas.

    Sessenta por cento dos condutores de veículos em Baltimore são negros, mas em 82% dos casos em que policiais pararam motoristas no trânsito, os motoristas eram negros.

    Dos 410 pedestres parados pela polícia ao menos dez vezes durante o período de 5,5 anos coberto pela revisão dos dados, 95% foram negros.

    A prefeita, Stephanie Rawlings-Blake, e o comissário de polícia, Kevin Davis, apareceram na manhã desta quarta com Vanita Gupta, que dirige a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça, para discutir as conclusões do documento.

    O texto servirá como base para os primeiros passos para se chegar a um acordo negociado, conhecido como "decreto de consentimento", para a revisão do treinamento e das práticas da polícia, sob a supervisão da Justiça.

    Na entrevista coletiva, Rawlings-Blake disse que a cidade vai avançar com presteza máxima para efetuar mudanças no Departamento de Justiça. Mas, segundo Davis, efetuar mudanças significativas levará tempo, engajamento e confiança.

    EFEITO POSITIVO

    Mesmo assim, algumas pessoas em Baltimore dizem que a investigação já teve um efeito positivo, antes mesmo da divulgação de seus resultados.

    "Estou começando a enxergar muitos dos resultados que eu queria, ou seja, que as autoridades eleitas e o comissário de polícia entendam que não podem mais continuar fazendo como sempre foi feito", disse Jill Carter, representante estadual democrata que há anos faz pressão por reformas da polícia.

    Mesmo assim, disse ela, "é muito lamentável que tenha sido preciso ocorrer a morte de Freddie Gray e que a gravidade do problema chamasse a atenção nacional e internacional".

    Freddie Gray, 25, morreu em abril de 2015 de lesão na espinha sofrida quando estava sob custódia policial. Sua morte desencadeou uma onda de saques e violência em Baltimore que levou o governador a chamar a Guarda Nacional para ajudar.

    Mas Rawlings-Blake, que solicitou a investigação do Departamento de Justiça, ressalvou que os habitantes negros da cidade já tinham uma "relação estragada" com a polícia muito antes da morte de Gray.

    CRISE POLICIAL

    Baltimore é uma das quase duas dúzias de cidades investigadas pela administração Obama depois de serem acusadas de policiamento inconstitucional habitual.

    Lançando mão de seus amplos poderes de fazer implementar as leis de direitos civis, o Departamento de Justiça exigiu que sejam feitas mudanças de grande escala no modo como a polícia trabalha nessas cidades.

    Em várias das cidades, incluindo Seattle, Cleveland e Ferguson, as investigações começaram depois de um caso destacado de morte cometida pela polícia ter desencadeado protestos e, em alguns casos, tumultos.

    Mas Jonathan Smith, ex-funcionário do Departamento de Justiça que comandou a investigação sobre Ferguson, disse que o departamento possui recursos para investigar "apenas uma parte minúscula dos lugares onde existe necessidade de engajamento com os direitos civis".

    Mesmo assim, segundo ele, cada relatório, embora talvez não tenha trazido resultados surpreendentes, representa um passo importante no sentido de promover reformas e sanar os problemas das comunidades.

    "Vejo os relatórios como um momento catártico necessário, talvez um ato de testemunho em que se dá voz a pessoas que de outro modo não teriam voz", disse Smith.

    Ray Kelly é diretor do No Boundaries Coalition, grupo de defesa dos direitos civis de Sandtown-Winchester, o bairro da zona oeste de Baltimore onde Freddie Gray cresceu. Ele concorda com a visão de Smith. "O departamento de polícia de Baltimore só vai mudar sua maneira de operar se for forçado a mudar", ele opinou.

    ABUSOS

    Depois da morte de Gray, a organização de Kelly convocou uma audiência pública à qual compareceram cem pessoas que falaram sobre abusos cometidos pela polícia. Mas apenas nove dessas pessoas concordaram em ser publicamente identificadas. A organização gravou entrevistas com elas e enviou as gravações ao Departamento de Justiça.

    Kelly disse que essas entrevistas e outras, anônimas, formaram a base do documento "As Descobertas da População", lançado em março e enviado ao Departamento de Justiça, que o citou em seu relatório.

    Kelly foi uma das pessoas que deu seu testemunho. Dois anos atrás, quando trabalhava para a ACM como diretor de instalações, ele foi parado pela polícia a caminho do trabalho. Ele abriu seu casaco, revelando que usava camiseta roxa com a insígnia da ACM, e o policial o deixou seguir caminho.

    "A gente só pode torcer para não ser preso por vadiagem ou alguma coisa maluca assim, porque nesses casos você pode ficar parado por 23 horas na delegacia por alguma coisa que nunca sequer chega a um tribunal", ele disse. "Isso acontece comigo desde sempre. Não consigo me lembrar de nenhuma época em que não tenha sido assim."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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