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    'Brexit' faz com que judeus britânicos procurem cidadania alemã

    KIMIKO DE FREYTAS-TAMURA
    DO "NEW YORK TIMES", EM LONDRES

    16/08/2016 10h52

    Conor O'Leary/The New York Times
    Philip Levine, a Londoner and a Jew, who has decided to apply for German citizenship, in London, Aug. 10, 2016. Many British Jews are using an old German law to seek citizenship there so they can continue to live and work in the European Union despite Britain's vote to leave the bloc. (Conor O'Leary/The New York Times)
    Philip Levine, britânico e judeu, que decidiu pedir a restituição de sua cidadania alemã após o 'brexit'

    Até o Reino Unido votar pela saída da União Europeia, Philip Levine nunca tinha pensado muito sobre sua ascendência judaica.

    Mas, procurando uma maneira de garantir que ele possa continuar a trabalhar e viver na Europa depois que o Reino Unido sair do bloco, Levine, 35, que nasceu no Reino Unido e vive em Londres, decidiu fazer algo que alguns judeus, incluindo seus parentes, talvez considerem impensável: pedir cidadania alemã.

    Para isso, Levine lançou mão de um artigo da legislação alemã que existe desde 1949, mas tem sido pouco utilizado nos últimos anos. O artigo permite que qualquer pessoa que os nazistas destituíram de sua cidadania alemã "por motivos políticos, raciais ou religiosos" entre 30 de janeiro de 1933 e 8 de maio de 1945 possa ter sua cidadania restaurada, sendo que o mesmo se aplica a seus descendentes.

    A maioria dos que perderam sua cidadania nesse período foi formada por judeus, mas também houve membros de outras minorias e adversários políticos dos nazistas.

    Levine não é o único a voltar-se à lei alemã depois da decisão britânica de encerrar sua participação na União Europeia. A embaixada da Alemanha em Londres informou que desde o plebiscito que aprovou o "brexit", em junho, recebeu pelo menos 400 pedidos de britânicos por informações sobre a possibilidade de ganhar a cidadania alemã graças a um dispositivo legal conhecido como artigo 116.

    Pelo menos cem indivíduos ou famílias deram entrada em pedidos oficiais de cidadania alemã, disse Knud Noelle, funcionário da embaixada. "Prevemos receber mais nas próximas semanas", disse ele, precisando que a embaixada normalmente recebe cerca de 20 pedidos desse tipo por ano.

    O interesse entre judeus britânicos está maior do que nunca, disse Michael Newman, executivo-chefe da Associação de Refugiados Judeus, sediada em Londres. Ele próprio está pensando em pedir a cidadania alemã. "Não me recordo de ter ouvido falar de nenhum pedido de cidadania alemã antes" nos 75 anos de história da associação, disse ele. "Foi preciso o 'brexit' para isso. O 'brexit' mudou tudo."

    Embora o processo para pedir a cidadania seja simples, está envolto em questões complexas de identidade e nacionalidade que dividiram a Europa no século passado –mais uma consequência não pretendida da decisão do Reino Unido de seguir seu próprio caminho, depois de mais de 20 anos fazendo parte do bloco.

    No caso de Levine, seus avós fugiram da Alemanha em 1939, no início da Segunda Guerra Mundial. Eles conservaram seus documentos, incluindo passaportes antigos e vistos de entrada no Reino Unido, que são necessários para o pedido de cidadania.

    Newman disse que cerca de 70 mil judeus da Alemanha, Áustria e antiga Tchecoslováquia chegaram ao Reino Unido antes de 1939. Mas as autoridades britânicas os viam com desconfiança. Muitos foram mantidos em campos de internamento em lugares como a ilha de Wight, frequentemente ao lado de alemães pró-nazistas que também tinham decidido radicar-se no Reino Unido.

    Quando o Partido Nazista foi declarado o único partido político legal na Alemanha, o governo promulgou uma lei destituindo judeus individuais da cidadania alemã. Seus nomes eram listados na "Gazeta de Direito do Reich". Judeus alemães residentes no exterior perderam sua cidadania alemã em novembro de 1941.

    Enquanto começavam as deportações e eram construídos os primeiros campos de extermínio, os judeus foram sendo destituídos de seus imóveis e de outros bens. Muitos ficaram impossibilitados de sair da Alemanha, porque seus passaportes tinham sido anulados.

    No caso de alguns dos judeus britânicos que estão pedindo cidadania alemã agora, o processo os levou a encarar uma história familiar dolorosa pela primeira vez. Alguns judeus americanos estão passando pelo mesmo processo, embora não tenham o incentivo adicional dado pela retirada britânica do Reino Unido.

    Thomas Harding é outro britânico judeu que está solicitando a cidadania alemã. "Eu me sinto muito mais à vontade com os alemães e a Alemanha", disse ele. Quando o Reino Unido anunciou que sairia da Europa, "fiquei realmente angustiado. Senti que estava perdendo alguma coisa."

    Gordon Welters/The New York Times
    Thomas Harding, right, of Britain, in his great-grandfather’s home, known as the Alexander House, which was seized by the Nazis and only recently returned to the family, in Gro? Glienicke, Germany, June 27, 2016. Many British Jews are using an old German law to seek citizenship there so they can continue to live and work in the European Union despite Britain's vote to leave the bloc. (Gordon Welters/The New York Times)
    Thomas Harding, à dir., na casa de seus bisavôs, em Glienicke, na Alemanha

    Bisneto de Alfred Alexander, médico eminente de Berlim que teve Albert Einstein e Marlene Dietrich entre seus pacientes, Harding, 48, disse que seu desejo de obter a cidadania alemã se deve a um projeto de restaurar a casa de seu bisavô, que foi confiscada pelos nazistas e devolvida à família apenas recentemente.

    Situada em Gros Glienicke, na divisa ocidental com Berlim, perto de um aeroporto importante no tempo dos nazistas, a casa de campo foi tombada em 2014 e convertida em um memorial da verdade e reconciliação.

    O projeto foi o tema do livro recém-publicado de Harding, "The House by the Lake". A ideia nasceu quando moradores de Gross Glienicke procuraram Harding em função de um projeto separado de pesquisa sobre as famílias judaicas do povoado, incluindo a dele.

    Harding contou que no início "eu ainda sentia muito antagonismo em relação à Alemanha e os alemães. Muita desconfiança."

    Mas, à medida que seu relacionamento com os moradores da vila alemã se aprofundou, que as obras na casa avançaram e uma amizade foi nascendo, "isso me deu a confiança de poder entrar por aquela porta", disse ele. "E os moradores me acolheram de braços abertos."

    Sua visão da Alemanha ficou ainda mais positiva quando o país começou a acolher centenas de milhares de refugiados sírios. "Fiquei muito grato aos alemães. Acho que foi uma decisão incrivelmente corajosa, muito difícil, muito controversa, mas acertada."

    Neste ano sua irmã, que vive na Alemanha e é casada com um curdo sírio, trouxe os parentes sírios de seu marido para viver na Alemanha. Harding disse que fica assombrado ao perceber que a história se repete eternamente. "O importante aqui não são alemães, judeus ou sírios", ele disse. "Essa é a condição humana. Isso vai ocorrer sempre."

    Tudo se cristalizou para ele no dia 23 de junho, duas horas depois de o Reino Unido ter acabado de contar os votos pela saída da União Europeia. "Pensei: 'Na realidade, não quero estar separado da Europa'."

    "Adoro o fato de que não estou pedindo cidadania –estou pedindo para minha cidadania ser restaurada", ele disse. "Isso está previsto na legislação fundamental inicial de quando a Alemanha foi criada. Acho isso tremendamente significativo."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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