• Mundo

    Sunday, 05-May-2024 09:17:10 -03

    Pais de bebê negro de Baltimore revelam vida de tensão racial nos EUA

    RACHEL L. SWARNS
    DO "NEW YORK TIMES"

    25/08/2016 17h00

    Ele montou o berço e as prateleiras. Ela desembalou as roupas de cama e encheu o armário de roupinhas de bebê. E então marido e mulher olharam o quarto do bebê e se preocuparam. Bill Janu é policial e branco. Shanna Janu, advogada, é negra. Enquanto aguardavam o nascimento de seu filho, nesta primavera, sua ansiedade não parava de aumentar.

    Eles tinham optado por não saber o sexo do bebê antes do nascimento. Mas seus quase dois anos de casados tinham sido marcados pelos assassinatos de homens e meninos afro-americanos em Ferguson (Missouri); Brooklyn; Cleveland; North Charleston (Carolina do Sul) e Baltimore, todos mortos pela polícia. Bill Janu, que ansiava por um filho, tentou tranquilizar sua mulher. Shanna Janu lhe mandava um artigo após outro por e-mail, avisando dos perigos que os garotos negros enfrentam.

    Lexey Swall/The New York Times
    O policial Bill Janu e sua mulher, a advogada Shanna Janu
    O policial Bill Janu e sua mulher, a advogada Shanna Janu

    Quando a data do parto chegou perto, Bill Janu começou a rezar para que fosse menina.

    O bebê nasceu, finalmente, no hospital St. Agnes, depois de mais de 20 horas de trabalho de parto. O recém-nascido tinha os olhos azuis de Bill Janu e o nariz e lábios fartos de Shanna Janu. Bill ficou extático. Mas então sentiu o peso de sua nova realidade.

    "Tenho um filho negro em Baltimore", o investigador de polícia branco pensou, segurando seu filho recém-nascido no colo.

    CONFRONTOS

    Wesley William Janu, nascido em 23 de maio de 2016, deu seu primeiro sorriso durante um verão ensanguentado pelos piores enfrentamentos em décadas entre afro-americanos e a polícia: as mortes consecutivas, em julho, de negros em Baton Rouge, Louisiana, e Falcon Heights, Minnesota, seguidas pelo assassinato de cinco policiais em Dallas e três outros em Baton Rouge. Este mês, manifestantes incendiaram imóveis e entraram em choque com policiais em Milwaukee depois de um homem negro armado ter sido morto a tiros na cidade pela polícia.

    A violência vem sendo arrasadora para famílias como os Janu, casal inter-racial que vive numa casa geminada num bairro tranquilo de Baltimore e se esforça para lançar uma ponte sobre as divisões raciais no país. Mas as discussões nacionais acaloradas sobre policiamento e raça parecem especialmente dolorosas para uma mulher negra nascida no Sul e seu marido branco que usa distintivo de policial.

    Lexey Swall/The New York Times
    O policial Bill Janu e sua mulher, a advogada Shanna Janu
    O policial Bill Janu e sua mulher, a advogada Shanna Janu

    Eles sabem que seu filho está assumindo seu lugar no mundo em um momento cheio de possibilidades, mas também de mal-estar. Wesley vai aprender a sentar sozinho durante o último mandato do primeiro presidente afro-americano do país. Vai comemorar seu primeiro aniversário em 2017, o ano do 50º aniversário da decisão da Suprema Corte que derrubou as leis estaduais que proibiam casamentos inter-raciais.

    DIVISÃO

    De acordo com o Censo dos EUA, quando Wesley tiver 28 anos é muito provável que mais da metade da população dos Estados Unidos já seja formada por membros de grupos étnicos ou raciais minoritários ou pessoas mestiças.

    Mas este é também um tempo em que os americanos negros e brancos estão profundamente divididos. O rosto de Wesley revela vislumbres do futuro racial dos EUA, mas esse futuro com frequência parece incerto e intranquilo.

    Nascida em Louisiana, Shanna Janu cresceu em um subúrbio de maioria branca no interior do Estado de Nova York. Entrou para uma irmandade branca na faculdade e casou-se com um detetive branco. Hoje em dia, porém, ela teme que o racismo e a discriminação já façam parte inextricável da sociedade e se pergunta como isso pode afetar sua família.

    Shanna se preocupa quando seu marido coloca seu revólver no coldre, se despede com um beijo e sai de casa para perseguir traficantes de armas e bandidos violentos nesta cidade de maioria negra. Será que ele agora se converterá em alvo nas ruas?

    Enquanto se adapta aos ritmos de alimentar seu bebê e trocar suas fraldas 24 horas por dia, ela se preocupa. Que perigos Wesley poderá enfrentar às mãos da polícia quando for adolescente?

    CONFLITOS INTERNOS

    A há a divisão racial presente em sua própria casa, as questões que às vezes geram diferenças de opinião entre marido e mulher. Shanna Janu, 31 anos, é defensora acirrada do movimento Black Lives Matter, por exemplo. Já seu marido, 42 anos, argumenta que alguns dos ativistas do movimento "fazem mais mal do que bem" e projetam "muito ódio" em relação à polícia.

    "Será que estou sendo uma esposa desleal de policiais porque sou tão a favor do Black Lives Matter, porque sinto afinidade tão forte pelo movimento?", indagou Shanna Janu, descrevendo seu conflito interno durante suas 12 semanas de licença-maternidade. "Eu me esforço para olhar a questão pelos dois lados. Isso me deixa um pouco dividida."

    VÍTIMAS E AGRESSORES

    Os avisos começaram a pipocar no celular de Bill Janu depois do anoitecer do dia 7 de julho, enquanto ele percorria o centro de Baltimore em sua viatura policial não identificada como tal. Foi o primeiro indício que ele teve de que uma calamidade estava em curso.

    "Tome cuidado", um amigo recomendou por SMS.

    "Se cuida", escreveu outro.

    Em casa, Shanna Janu tentava apagar da cabeça as imagens de um homem negro morrendo. Naquele dia ela se alegrara quando percebeu que Wesley acompanhava seus movimentos com os olhos. Ela tinha registrado a emoção num aplicativo que rastreia o desenvolvimento do bebê.

    Mas então, enquanto amamentava seu filho, ela entrou no Facebook e viu Philando Castile, deitado, sangrando em seu carro no Minnesota, enquanto a namorada dele filmava seu confronto com o policial que atirara nele.

    Shanna apertou o botão de pausar, mas já tinha visto demais. Ficou sentada no sofá, em choque, com Wesley nos braços, revivendo todos seus medos em relação ao futuro de seu filho.

    Ela estava dormindo quando Bill voltou para casa. Quando voltou, ele já sabia porque recebera as mensagens urgentes. Cinco policiais em Dallas tinham sido mortos a tiros naquela noite. Abalado, Bill passou a noite em claro, alternando entre os jornais da CNN, MSNBC e Fox. Apenas quando amanheceu é que falou a sua mulher sobre o que acontecera no Texas.

    "Eu só queria abraçá-la", ele contou.

    ENCONTRO E RACISMO

    Shanna e Bill se conheceram seis anos atrás, tendo sido apresentados por acaso por amigos mútuos que ficaram atônitos quando eles ficaram juntos. Shanna, que é irônica e franca, tinha jurado que jamais namoraria um policial. Tinha crescido ouvindo as histórias contadas por seus pais sobre encontros hostis entre afro-americanos e a polícia no Sul racialmente segregado.

    Bill Janu, que é robusto, barbado e careca, parecia um personagem de um drama policial da televisão. Ele tinha passado uma década nas Forças Armadas e uma década na polícia, trabalhando principalmente em uma unidade especializada em vendas de armas e criminosos que usam armas de fogo.

    Seu pai, que rejeita relacionamentos interraciais terminantemente, parou de falar com ele. Bill não se abalou com a desaprovação paterna nem com os muitos artigos de jornais e blogs que Shanna lhe mandava por e-mail, avisando-o sobre os desafios enfrentados por casais inter-raciais e pais de filhos mestiços.

    Mas a dor ainda aparece de vez em quando. Um ano atrás, Bill topou com seu pai por acaso quando visitava parentes perto de Cleveland. Seu pai se levantou sem falar, foi até seu conversível branco e trancou a porta. Bill correu atrás dele e deu socos nos vidros do carro.

    "Por que você não fala comigo?", gritou, mas seu pai ligou o carro e foi embora.

    PEQUENO HOMEM

    Às vezes os Janu conseguem esquecer tudo isso: o fato de saber que seu filho talvez nunca conheça seu avô paterno. Seus receios quanto ao que Wesley poderá enfrentar quando virar um homem jovem.

    Eles se perdem no casulo protegido que é sua casa, gritando respostas aos participantes do programa "Family Feud", falando sobre a conta de luz, a papelada da creche e seus esforços eternos para conseguir que Wesley tire sonecas mais longas -esforços esses que recentemente incluíram a aquisição de algo chamado "Macacão Mágico do Bebê Merlin".

    "Ele dormiu três horas!", Shanna anunciou a seu marido, alegre, numa noite recente quando Bill voltou do trabalho.

    Os dois se concentram em Wesley -que Bill chama de "Little Man"–, na força de seus dedos, o modo como ele faz beicinho e o jeito como percorre edifícios altos com o olhar. "Acho que ele quer escalar os prédios", brincou seu pai, que visualiza seu filho jogando futebol e beisebol.

    BRUTALIDADE

    Este verão, porém, a brutalidade do mundo externo pareceu invadir a tranquilidade deles a todo momento.

    Dias após o assassinato dos policiais em Dallas, um dos colegas de Bill Janu, um policial que foi ao casamento de Bill e Shanna, escapou por pouco de uma saraivada de balas. Num primeiro momento, algumas pessoas do departamento de polícia temeram que o agressor tivesse a intenção de emboscar policiais.

    Quinze dias mais tarde, quando Shanna estava tirando o macacão novo da embalagem, Bill lhe telefonou para dizer que sua unidade policial se preparava para enfrentar protestos. A promotora chefe de Baltimore tinha anunciado que não levaria adiante o processo contra os policiais acusados pela morte de Freddie Gray, negro que apresentou uma lesão fatal da espinha depois de ser transportado numa van da polícia. Shanna Janu, que trabalha para o governo federal com a lei de reforma da saúde de Obama, ainda estava de licença-maternidade.

    "Vai haver tumultos, é isso o que você está dizendo?" ela perguntou, segurando o telefone com força, enquanto embalava Wesley.

    A cidade permaneceu calma. Mas este mês a situação ficou explosiva em Milwaukee. E o Departamento de Justiça divulgou um relatório altamente crítico, acusando a polícia de Baltimore de sistematicamente parar, revistar e prender moradores negros da cidade por infrações de pouca importância, muitas vezes sem causa alguma.

    LIÇÕES

    Wesley não tem consciência do tumulto, é claro. Mas seus pais já começaram a ensaiar o que vão lhe dizer, quando chegar a hora.

    "Não faça coisas que chamem muita atenção para você, mesmo que seus amigos brancos as estejam fazendo. Não corra por aí usando agasalho com capuz. Não entre no pátio de uma casa para buscar uma bola. Se um policial lhe mandar fazer alguma coisa, obedeça."

    Shanna Janu se considera uma mãe prática e pragmática, mas a lista de recomendações a entristece. "Os garotos negros não são autorizados a ser ingênuos ou crianças", ela disse. "Eles não têm esse privilégio."

    Inicialmente, Bill Janu ficou perplexo com esse tipo de comentário. Ele é o otimista da família, o sonhador. Nunca tinha imaginado ter uma discussão desse tipo com seu filho algum dia. "Não haveria necessidade de explicar essas coisas a uma criança branca", ele disse.

    Bill falou que passou a maior parte de sua vida "com antolhos". Suas conversas com sua mulher lhe abriram os olhos.

    Ele disse que no passado, frequentemente supunha que os adolescentes negros que via nas esquinas de bairros pobres fossem futuros bandidos, jovens destinados a ser algemados. Hoje ele procura a alegria nos rostos dos meninos brincalhões que ainda estão curtindo os últimos dias do verão.

    E torce para que algum dia outros policiais enxerguem essa alegria em seu filho.

    P.(TAGLINE) Tradução de Clara Allain

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024