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    No Irã, sistema permite pagar abertamente a doadores de rim

    NASSER KARIMI
    JON GAMBRELL
    DA ASSOCIATED PRESS, EM TEERÃ

    26/08/2016 19h06

    O zumbido agudo de uma máquina de diálise poderia ter se tornado a trilha sonora do resto da vida de Zahra Hajikarimi, não fosse por um incomum programa iraniano que permite que pessoas comprem um rim de um doador vivo.

    O programa de rins do Irã se destaca de todos os demais sistemas de doações de órgãos do planeta ao permitir pagamentos abertamente, em geral em valores da ordem dos milhares de dólares.

    Desde 1999, o sistema ajudou a praticamente eliminar a lista de espera por rins para doação, diz o governo, em contraste com a situação de países ocidentais como os Estados Unidos, onde dezenas de milhares de pessoas vivem na esperança de um órgão, e milhares delas morrem esperando, a cada ano.

    Os críticos advertem que o sistema pode explorar os pobres da economia do Irã, que passou muito tempo sufocada por sanções; há anúncios no país prometendo pagamento em dinheiro por rins.

    A Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras organizações se opõem à "comercialização" dos transplantes de órgãos. Há quem argumente que um sistema pago como esse, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, colocaria as pessoas que não têm como pagar em desvantagem na busca por um rim, caso necessitem de transplante.

    Mas já que o mercado negro de órgãos para transplante continua a prosperar em países como a Índia, as Filipinas e o Paquistão, e muita gente morre a cada ano esperando por rins, alguns médicos e outros especialistas instam os Estados Unidos e outros países a considerar a adoção de alguns aspectos do sistema iraniano, a fim de salvar vidas.

    "Alguns doadores têm motivações financeiras. Não podemos dizer que não têm. Se [esses doadores] não tivessem motivos financeiros, eles não... doariam um rim", disse Hashem Ghasemi, diretor da Associação dos Pacientes de Diálise e Transplantes do Irã, à Associated Press. "E algumas pessoas têm a caridade como motivação, de fato."

    A Associated Press teve acesso ao programa iraniano, um acontecimento raro, visitou pacientes que sobrevivem com a ajuda de diálise enquanto esperam por um órgão, conversou com um homem que está se preparando para doar um rim e assistiu a uma cirurgia de transplante realizada por médicos em Teerã. Todos os entrevistados enfatizaram a natureza altruísta do programa —embora pichações encontradas nas paredes e árvores em áreas próximas de hospitais iranianos fossem anúncios de pessoas interessadas em vender um rim por dinheiro.

    No que tange às doações de órgãos, os rins são únicos. Embora as pessoas nasçam com dois, a maioria de nós pode viver uma vida plena e saudável com apenas um deles cuidando da função de filtrar os detritos do sangue. E embora o doador e o receptor precisem ter um tipo de sangue compatível, doações de desconhecidos são tão bem sucedidas quanto as feitas por um parente próximo. Além disso, rins de um doador vivo têm índices de sobrevivência em longo prazo melhores do que os rins de um doador morto.

    O PROGRAMA

    O Irã começou a realizar transplantes de rins em 1967, mas o número de cirurgias caiu depois da revolução islâmica de 1979 e da invasão da embaixada norte-americana em Teerã por militantes, em parte motivada por sanções. O Irã permitia que pacientes viajassem ao exterior para transplantes, por boa parte dos anos 80 —inclusive para os Estados Unidos. Mas os custos elevados, a lista de espera crescente no país e a sofrida guerra de oito anos contra o Iraque forçaram o país a abandonar seu programa de transplantes no exterior.

    Em 1988, o Irã criou o programa que tem em vigor até hoje. A pessoa que precisa de um rim é encaminhada à Associação de Pacientes de Diálise e Transplantes, que busca potenciais doadores adultos e saudáveis para o paciente. O governo paga as cirurgias, e o doador recebe cobertura plena de saúde por pelo menos um ano, e um corte no preço de seu plano de saúde pelos anos seguintes nos hospitais do governo.

    As pessoas que intermediam a transação não recebem pagamento. Elas ajudam a negociar a compensação financeira que o doador venha a receber, geralmente em valor equivalente a US$ 4,5 mil. Também ajudam a encontrar organizações de caridade ou doadores ricos para cobrir o custo, no caso de pacientes que não têm como pagar por um rim.

    Hoje, mais de 1.480 pessoas por ano recebem um rim transplantado de um doador vivo no Irã, o que representa 55% do total de 2,7 mil transplantes realizados anualmente no país. Cerca de 25 mil pessoas ao ano fazem hemodiálises, mas a maioria delas não busca transplantes porque sofrem de outros problemas graves de saúde ou são idosas demais para o procedimento.

    Cerca de 8% a 10% dos inscritos são rejeitados devido a problemas de saúde e outras preocupações. O período médio de sobrevivência de uma pessoa que recebe um novo rim é de entre sete e dez anos, embora algumas sobrevivam por mais tempo, de acordo com reportagens iranianas.

    Nos Estados Unidos, cerca de um terço das doações de rins são feitas por doadores vivos. Em média, o rim de um doador morto dura dez anos, enquanto o de um doador vivo dura em média 15 anos, de acordo com David Klassen, da Rede Unificada de Compartilhamento de Órgãos (UNOS), que supervisiona o sistema de transplantes dos Estados Unidos. Os receptores de rins de doadores vivos nos Estados Unidos se saem melhor, em parte, porque não passaram tanto tempo sobrevivendo com a ajuda de diálises antes de seus transplantes.

    DRAMA PARTICULAR

    Para Hajikarimi, 52, mãe de dois filhos, o transplante precisa vir o mais rápido possível. Ela sofreu falência de seus dois rins, e os médicos identificaram níveis de proteína superiores aos normais em sua urina. Ela está sobrevivendo com a ajuda de diálise há quatro meses.

    Ao longo do período, os médicos determinaram que ela está em condição de receber um transplante, e a organização sem fins lucrativos que cuida de seu caso iniciou a busca por um médico, um processo que tipicamente pode durar até seis meses. Depois disso, receptor e doador se reúnem para fechar um acordo quanto ao lado financeiro da transação, antes da cirurgia.

    O Irã afirma que seu sistema protege os pacientes contra um mercado negro de venda de órgãos ao encarregar a organização sem fins lucrativos de cuidar de todos os arranjos e de reter o dinheiro para desembolso só depois da cirurgia. O Departamento da Saúde do governo precisa aprovar as cirurgias, que acontecem em hospitais licenciados e fiscalizados. No momento, estrangeiros estão no geral proibidos de participar do processo, o que elimina a possibilidade de turismo médico.

    No entanto, fica claro que a principal motivação de alguns doadores é o pagamento. A inflação e o desemprego continuam altos no Irã mesmo depois do acordo nuclear do ano passado entre o país e as potências mundiais, que resultou na suspensão de algumas sanções.

    Um homem disse que pediu licença para vender um de seus rins a fim de pagar dívidas. No Irã, devedores podem ser condenados à prisão.

    "Estou aqui porque, se não conseguir o dinheiro, minha vida toda estará arruinada", disse o candidato a doador, que falou sob a condição de que seu nome não fosse revelado por medo de arruinar sua imagem profissional. "Minha vida e minha figura pública estão em perigo. Isso me levou a agir como estou agindo."

    BOA VONTADE

    A pobreza em todo o mundo resulta em vendas de rins no mercado negro, um negócio lucrativo que a OMS estima ter respondido por pelo menos 5% de todos os transplantes mundiais desse órgão em 2005, ainda que o número seja basicamente um palpite. Os princípios normativos da agência de saúde da ONU para o transplante de órgãos apelam pela proibição da venda de órgãos, ainda que permitam o "reembolso de despesas razoáveis e comprovadas", entre as quais a perda de renda do doador vivo.

    O sistema do Irã oferece uma maneira diferente de enfrentar a falta de rins para transplante em todo o mundo, segundo Sigrid Fry-Revere, especialista no programa iraniano cujo livro "The Kidney Sellers: A Journey of Discovery in Iran" (Os Vendedores de Rins: Uma Jornada de Descobertas no Irã), examina a questão em profundidade.

    "Não há como colocar preço em um órgão", disse Fry-Revere, presidente e cofundadora da Rede Americana de Doadores Vivos de Órgãos. "É uma forma de boa vontade recompensada. São duas pessoas que se unem para tornar melhores as vidas de ambas."

    Nos Estados Unidos, existem mais de 99 mil pacientes na lista de espera de rins para transplante no momento. No ano passado, foram realizados 17.878 transplantes, e 4.481 pessoas morreram esperando um rim, de acordo com a UNOS. Uma lei de 1984 tornou ilegal a venda de órgãos nos Estados Unidos.

    No Brasil, a venda de órgãos também é proibida.

    Nos últimos anos, uma série de estudos acadêmicos e artigos de opinião, por médicos e economistas renomados como Alvin Roth, laureado com o Prêmio Nobel de Economia, exploraram a ideia de permitir doações de rins pagas nos Estados Unidos. Em um artigo para a edição de outubro do "American Journal of Transplantation", os autores —três médicos e um economista— propuseram um sistema sob o qual o governo pagaria US$ 45 mil a um doador vivo de rim e US$ 10 mil à família de um doador morto.

    "Uma compensação dessa ordem poderia ser definida como expressão de apreciação, da parte da sociedade, a alguém que deu à outra pessoa o dom da vida", o artigo afirmava.

    Alguns especialistas em questões éticas e médicos argumentam que remunerar os doadores nos Estados Unidos colocaria os pobres em desvantagem quando o assunto for obter um órgão, e também os pressionaria a oferecer órgãos para venda quando enfrentam problemas financeiros.

    "Ainda acreditamos que a busca de lucro, ou que alguém obtenha lucro com uma venda, fazendo disso uma transação comercial, é um precedente perigoso", disse Kevin Longino, presidente-executivo da Fundação Nacional do Rim nos Estados Unidos. "Continua a ser um jeito fácil de explorar os pobres e as pessoas desprivilegiadas."

    Longino, que recebeu um transplante de rim em 2004, disse que sua organização apoia os transplantes "neutros em termos de lucro", os quais permitem que os doadores recebam assistência para cobrir o custo de tratamentos médicos, a renda perdida e outras despesas, desde que não lucrem com a operação.

    No entanto, Longino admitiu que continua a existir confusão quanto ao que é e não é permitido pelas leis norte-americanas, o que causa problemas até mesmo para a assistência "neutra em termos de lucro".

    Por enquanto, Hajikarimi passa mais de duas horas no metrô, tomando três linhas diferentes, para ir ao hospital três vezes por semana para sessões de hemodiálise. Para ela, um doador vivo seria uma chance de sobrevivência que, de outra forma, ela não teria.

    "Seria muito difícil imaginar uma vida sem a possibilidade de doação de um rim", ela disse. "Não haveria forma de me recuperar... seria um desastre completo, uma agonia."

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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